quinta-feira, 23 de junho de 2011

GENTE HUMILDE. JOÃO QUALQUER

Por Ana Laura Diniz

Moradores de rua no Centro de São Paulo
Foto: Google Images
O nome de cartório é João Bastos da Silva, “mas pouco importa”. Ele se denomina João Qualquer. Apesar da pinga diária, seus 57 anos parecem 45. “É a cor que ajuda, dona. Não dizem que nêgo quando tinta (o cabelo) tem 130? Mas pouco importa”.

Sim, para João Qualquer pouco importa se faz sol ou chuva, frio ou calor. “Sou um homem livre, e só isso importa.”

Há oito anos é “morador de rua, porque mendigo é outra coisa”. Conversador, ninguém acreditaria em tanto verbo um dia antes. Esticado no chão, João era observado por um varredor de rua. “Sempre olho pra ver se o sujeito tá vivo ou morto. Pior que às vezes vomita enquanto dorme e morre até engasgado”, disse Tobias, enquanto varria a calçada ocupada por João.

Pelos olhos e a fala arrastada, notava-se que Tobias também bebera. Talvez no mesmo bar de João, talvez em outro qualquer.

Negou-se a tirar foto porque garantiu que não tinha o melhor ângulo. “Vivo de costas para o mundo e para a vida, que é legal mesmo sendo um tormento”. Bebe até cair, porque aprendeu dessa forma espantar a dor. “Enquanto bebo, penso. Mas quando desmaio, nada mais incomoda, tudo se apaga e eu tenho momentos de paz”.

Ainda sóbrio e enrolado no cobertor que guarda durante o dia em bocas de lobo (bueiro), seu hálito à álcool pode ser sentido à distância, como que impregnado à pele. Tem sete dentes e a nicotina dança entre visíveis cáries. O cheiro de urina e de fezes denuncia dias e dias sem banho. Explica-se: a falta de banho é conduta normal na maioria das pessoas que vivem na rua por uma lógica simples — quanto maior a sujeira, menor o risco de abuso sexual.

Animado, João diz que gosta de ser brasileiro. “A gente apanha, mas pouco importa, a gente vai levando. Duro é passar fome. Pior ainda é se a pinga falta.” Durante o dia, pede esmola ou descola algum bico com os camelôs da Praça da Sé ou nos arredores do centro de São Paulo. É um homem sem RG, sem CPF, sem amor. Dinheiro não tem, embora registro na polícia colecione de montão. “Os caras fazem blitz e mandam todo mundo pro xilindró ou pro albergue, que dá no mesmo, porque só tem marginal”.

Seu português sofre com a falta de concordância, mas não falha ao dizer que “o Brasil é o país dos desesperados”. E não troca “problema” por “poblema”, “plobema”, “plobrema”, “pobrema” ou coisa parecida. “O problema está na falta de vontade das pessoa, dos governante. Que adianta mandar a gente pra onde não tem nada?”

João conta que invadira um prédio desativado no bairro da Vila Mariana, zona Sul, com mais oito famílias. Eram 45 pessoas distribuídas em cinco cômodos. O buraco do elevador transformaram em depósito de lixo, onde também aproveitavam para fazer suas necessidades. Conclusão: depois de três meses a vizinhança conseguiu que a prefeitura tomasse alguma providência. Todos foram desalojados e deslocados para “depois da Freguesia do Ó”, na zona Norte da cidade. “Saímos nós e os ratos”. O caso ficou famoso no bairro. Os funcionários precisaram usar máscaras especiais porque o lixo tomara até o quarto andar do prédio.

Há dois anos no centro, ele se diz feliz. “Aqui tenho a liberdade de ir e vir. Se caio hoje, levanto amanhã. E se cair e não levantar... o único problema é que não terei mais pinga pra tomar... mas aí... ah, já pouco importa”.