domingo, 3 de junho de 2012

SENHORA DO TEMPO- DALTON TREVISAN



Claudia Lopes Borio*

imagem google
Dalton Trevisan "A bruxa em trapos, banguela e bêbada, num sorriso para o bicho barbudo de saco na costas: - Amor, tem um cigarro aí? " (micro-conto n. 23, 111 Ais, Dalton Trevisan, Ed. L&PM Pocket, 2000) 




Dalton Trevisan (imagem Google)

Quero escrever aqui sobre Dalton, que passa furtivo e que tem uma história própria só minha e que não é a dos outros.

Todo mundo sabe, ou deveria saber, que Dalton Jérson Trevisan é um fabuloso contista curitibano, de temática ácida, que retrata a pobreza doída, material e espiritualmente, das relações humanas, desse nosso Sul frio e úmido, das pessoas que não têm mais cor nem dente e que vivem a esperar uma qualquer coisa que as faça mais felizes.

Ler Dalton é como uma faca fina que corta sem doer, só vai arder mais tarde quando já vemos o sangue a pingar. Sempre provoca uma estranheza e ao mesmo tempo tem um que de lírico, de belo, de triste, poema em forma de conto, humilde, trágico na pequenez humana mais absoluta.

Eu leio Dalton, mas não muito, desde que me compararam a ele, para evitar que meu estilo saia ao seu, sem querer.

Não quero ter essa crueldade, essa amargura, mas talvez já tenha, pois também sou filha deste Sul frio e amargoso, das pessoas que esperam o ônibus em manhã de geada, rosto envolto em panos, frieira queimando os pés, calça comprida por baixo das saias, lenços nas cabeças, narizes ranhentos.

Ele passa impávido pelas ruas, na maior parte das vezes inédito e desconhecido. Dizem que copia o autor de "Catcher in the Rye", o Apanhador no Campo de Centeio, J.D. Salinger, um dos mais reclusos e esquisitos autores americanos, de cujo livro não gosto, pois sempre achei terrivelmente deprimente e foi um dos pouquíssimos que deixei de ler até o final.
Em todo o caso Dalton não sai, não anda de carro, nem dirigindo nem como passageiro, não badala, não conversa com ninguém, e sobretudo não viaja a lugar nenhum.

Mora no Alto da Rua XV, um bairro de classe média próximo do centro da cidade de Curitiba, em uma casa que deve ser dos anos 30, com pé direito alto, pintada de um cinza lentamente desbotado, com velhas cortinas de renda também acinzentadas nas janelas.

Os muros são altos, muralhas, quase, e o quintal grande era cercado por altos cedros. Ao que parece ele tentou podar o topo dos cedros para que não crescessem muito, e ficaram árvores esquisitas, deformadas, com galhos que se espalham aqui e acolá, disformes como mutações genéticas.

Apesar de ter com certeza mais de 80 anos, Dalton Trevisan não parece ter mais de 60. Anda com as costas retas, em passo rápido, com o rosto meio escondido por um boné, calças jeans e uma surrada jaqueta.
Ao contrário da imagem de arredio e esquivo, quando abordado para um autógrafo, por exemplo, é afável e nunca se nega.

Frequentou um bom tempo o escritório de meu pai, onde dizia que ele era uma das três únicas pessoas com quem ele conversava. Uma honra duvidosa para quem se diz que ficou casado quase sessenta anos com uma mulher e não falou com ela senão nos cinco ou seis primeiros anos do casamento, sem, no entanto, se separar dela.
Mas tudo isso não passa de boatos, quiçá espalhados por ele mesmo.

Em todos os casos, comigo ele sempre foi amável e autografou uma primeira edição que tenho, comentando que já era um livro raro, com a bela capa com gravura de Poty.

Um dia, sabendo que meu pai ia à Inglaterra, como fazia quase todos os anos por um bom período de sua vida, pediu-lhe que trouxesse uma encomenda, um livro. Meu pai, curioso, perguntou o que era, ao que ele pediu uma coletânea de histórias em quadrinhos.

Uma pessoa que soube que ele se consultava com meu pai mandou uma pilha de livros, que ele autografou sem reclamar, e uma moça mandou uma tese que havia escrito, onde se fazia menção ao seu nome.
Nessa época ele já não vinha muito mais ao escritório, e meu pai mandou a tese a ele, pelo correio. Ele respondeu, mandando dois livros, um para meu pai, outro para a moça, devidamente autografado.

Meu pai sempre diz que o conhece desde que tinha dezessete anos, e que nunca falará o que pensa e sabe a respeito de sua história de vida, mantendo sempre a aura de segredo do escritor. Mas, sempre que recebe um livro, com que ele às vezes nos presenteia, acrescenta-o a sua estante, com carinho.

Por tudo isso, nosso vampiro curitibano é um tímido, com alma suave, embora escreva com ares de mestre de filme de terror, e continua escrevendo, de forma cada vez mais sintética, criando com a beleza das frases curtíssimas e perfeitas.

De vez em quando é visto em animada conversa em um café ali na Praça Santos Andrade, com algum fã que se aproximou jeitosamente e acabou por ganhar sua confiança, ou mesmo com alguma mocinha que o conquistou com timidez para uma boa conversa (ele é viúvo, afinal, pode namorar quem quiser).

No entanto, um conhecido escritor da terrinha também conquistou a sua confiança, tendo longas conversas com ele e depois escrevendo um livro em que escancarou as suas intimidades, verdadeiras ou inventadas, o que ficou muito mal para esse dito escritor, e ouso até pensar que ele terá que mudar de ofício, já que nosso vampiro é de estimação, seu caráter combina com nosso jeitão sulista e não admitimos que se mexa com ele.

O escritor curitibano Dalton Trevisan, 86, foi anunciado o vencedor da 24ª edição do Prêmio Camões, em Lisboa.



Dalton Trevisan (imagem google)


Deu na Folha de São Paulo: "Escritor curitibano Dalton Trevisan vence Prêmio Camões- O escritor curitibano Dalton Trevisan, 86, foi anunciado o vencedor da 24ª edição do Prêmio Camões nesta segunda-feira (21/05/2012), em Lisboa. A premiação, criada em 1988 por Brasil e Portugal, é o principal reconhecimento da literatura em língua portuguesa."

  *Claudia Lopes Borio é escritora curitibana e também anda pelas ruas, sem que ninguém a reconheça.