domingo, 6 de março de 2011

SENHORA DO TEMPO. COSTUREIRAS E ARMARINHOS - 2ª. parte

Por Vera Guimarães

Eu disse que com tecidos e linhas se faziam vestidos. Agora, para se construírem sonhos e desejos e para que os vestidos fossem únicos e individualizados, era preciso mais: era aí que inventávamos ou comprávamos os enfeites, bordados, aplicações, franzidos, plissados, debruados. Supérfluo? Oscar Wilde disse algo assim: “Deem-me o supérfluo, que eu dispenso o necessário.” Assino com o relator.

Era nos armarinhos, nome simpático para designar essas lojas, que encontrávamos as miudezas. Frequentei esses bazares, outro nome para eles, primeiro, ainda bem nova, como menina de recados e encomendas, e, depois, buscando o que enfeitasse e tornasse únicas minhas roupas.­­­

Na cidade de Porto, Portugal, que visitei em 2009, o comércio de suas ruas do centro ainda tem lojas que passam longe da estética uniformizante dos atuais shopping centers e das lojas de griffe. Por lá vi vitrines repletas de artigos e cores, sem ordem aparente, que me levaram ao que era o comércio na minha cidade nas décadas de 1940 e 1950. No Porto, registrei uma dessas lojas com a “cara” exata das que existiam na minha infância, só que nomeada com a obviedade desconcertante e a lógica irretocável dos nossos irmãos lusos: retrosaria, pois, pois!


Era também nos armarinhos da minha cidade que encontrávamos os artigos para bordados.  Quando a irmã costureira ficou noiva, nós, as outras irmãs, todas as noites, depois das tarefas, sentávamo-nos ao redor do rádio, ouvindo O DIREITO DE NASCER e bordando. Eu, a mais nova, fiz muito pouco. Ali imprimíamos, ponto a ponto, em linhos, cambraias, sacos alvejados, fustões e telas, as preciosas cenas Luis XV, paisagens mexicanas, lanternas japonesas, frutas possíveis, flores inventadas, belas camponesas, moinhos de vento e tudo o que estivesse no nosso imaginário. E isso era feito com pontos elaborados, que exigiam perícia e paciência: richelieu, matiz, ponto cheio, ponto de sombra, cu-de-pinto, ponto atrás, ponto corrente, ponto paris, ponto laçada...

Le Bon Marché
Naquele mesmo ano de 2009 já citado, em Paris, passeando por St-Germain, vi um lindo prédio, com cúpula e marquises de cobre azinavrado, um passadiço por cima de nossas cabeças ligando-o a outro prédio semelhante na outra rua. Eram, de um lado, o LE BON MARCHÉ e, do outro, seu departamento de comidas e afins, LA GRANDE EPICERIE DE PARIS. No primeiro, aquele mesmo leiaute da Galleries Lafayette, com balcões em todos os andares voltados para o vão central, as mesmas lojas belíssimas, as griffes mais renomadas, porém menos gente, pessoas com cara de não turista. E por ali fiquei a flanar, olhando por olhar, um de meus esportes preferidos.

No interior da loja
Num dos últimos andares, descobri um armarinho, enorme, com tudo o que eu já tinha visto e o que ainda não vira: todos os tipos de botões em estandes do chão ao teto, todas as espécies de sinhaninha, tira-bordada, ponto-russo, rendas, passamanarias, borlas, fitas de seda, fitas de veludo, aplicações variadas, linhas de todas as cores, em retroses, carretéis, tubos e meadas, lãs, agulhas finas, grossas e curvas, de tricô, de crochê e de bordar, artigos para confecção de bijuteria, fechos, miçangas, canutilhos, pérolas, paetês, contas, lantejoulas, plumas, pluminhas, marabus.

E, de repente, naquele templo moderno do consumo, a inesperada presença de uma compradora certamente muito qualificada, alguém pertencente a uma classe que por séculos se dedicou a criar, preservar e difundir, com paciência, originalidade e criatividade, essas artes miúdas, ali estava uma guardiã desse saber manual, ali, bem na minha frente, uma freira.