Mulheres na Passeata dos cem mil
Um dia, amigas comemoraremos nossa vitória com um banquete, em homenagem a todas que lutaram, ou que só usaram o batom. E bêbadas de nós mesmas, a mesa coberta com os destroços do combate, brindaremos as cadeiras vazias daquelas que lá não estão.
A que morreu no exílio
A que foi devorada por vermes estrangeiros
A que enlouqueceu um pouco e ainda tem delírios passageiros
A que comprou um sítio nos Cafundós e manda fotos de seus pés com tamancos
A que só encontro na rua, correndo entre o banco e o supermercado
A que fazia poesia maldita e acabou numa agência de propaganda
A que se casou com o Agenor e dizem que vive um triangulo amoroso
A que queria ser freira e dizem que transa droga
A que fazia parte do movimento “proletário”, que abriu uma butique
A que foi quase a nossa Maria Bonita, que hoje vive de trambique
A que era mãe e hoje é órfã de filho e viúva do Dói-Codi
A que queria mudar o mundo e se mudou
A que ia ser a melhor de nós todas, e vacilou
A que cantava hinos revolucionários sob protestos dos vizinhos
A que dava desconto no almoço aos esquerdistas
A que fumava Belmonte, que hoje cuida de cinco crianças adotadas
A que se tornou mãe de miss que é dona de um canil para cães de rua
A que desanimou no meio do caminho
A que rezava a Ave Maria antes de dormir e hoje posa para sites eróticos
A que saiu das trincheiras com deficiência física numa cadeira de rodas
A que lia Marx e hoje freqüenta uma igreja evangélica
A que militava na Resistência e se tornou Presidenta da República
Apesar das constantes violações aos direitos humanos e as torturas físicas e psicológicas sofridas no período da ditadura militar, e mesmo sem placas nas ruas como heróis da Resistência, mas com a consciência de que os bárbaros não passaram, porque nós também estávamos lá, nas barricadas da história, esta civilização nos deve, pelo menos, outra rodada.
Esta é a minha homenagem às mães remanescentes das trincheiras revolucionárias e a todas as mães fantasmas da minha geração.