sexta-feira, 4 de maio de 2012

PRECISAMOS FALAR SOBRE KEVIN

Por Dorothy Coutinh

FALANDO SOBRE TUDO

 


Quando tomamos conhecimento das tragédias decorrentes dos ataques e massacres às escolas na Rússia, na Finlândia, na Alemanha, no Brasil (Realengo), e em várias escolas e universidades de estados americanos saímos em busca do motivo plausível.

 Terminei de ler o livro Precisamos falar sobre o Kevin, obrigatório por inúmeras razões a partir do tema macabramente atual que é o das várias formas de violência que vêm sofrendo as nossas instituições de ensino. Quase sempre sem motivo aparente. Aliás, nada é mais preguiçoso do que procurar um motivo aparente. Talvez aí resida o melhor do livro: ele rejeita as versões oficiais, aquelas que engolimos fácil, que nos descem sem esforço.

O livro discute casamento e carreira, maternidade e família, sinceridade e alienação. Denuncia os erros culturais das sociedades contemporâneas que acabam por produzir os assassinos mirins em série e os pitboys tupiniquins.
O romance é narrado na série de confissões através das cartas de Eva – mãe do assassino, um garoto de 16 anos que nasceu perverso por natureza, mas que chegou às raias da insanidade ao atirar premeditadamente em onze colegas da escola, escolhidos a dedo para morrer.

Mas a mãe não faz um mea-culpa choroso. Não diz que precisou trabalhar fora e com isso a educação do filho ficou descuidada. Não fala sobre más influências. Não defende a exclusão do filho pela sociedade por ser um asiático, um negro ou gay, ou simplesmente um jovem deprimido.

O livro é o oposto. O relato não é condescendente com nada nem com ninguém. A mãe relembra a vida de recém-casada, a sua relutância em engravidar, o susto com o nascimento daquela criança que ela não identificava como um presente dos céus, a enorme dificuldade em contornar conflitos, a distância que surgiu entre ela e o pai do bebê e do incômodo reconhecimento de que formar uma família feliz não é tão simples como anunciam por aí.

Na maioria das vezes a literatura retrata a maternidade como uma experiência glorificante. A autora vai além da desconstrução do sublime. Ela desconstrói a todos nós trazendo à tona nossa incompetência como controladores de vôo de nossos filhos, nos mostrando que nossas orientações são bem intencionadas, mas não onipotentes, que nosso amor é necessário, mas nem sempre bem compreendido ou bem transmitido, que nossos cuidados podem ser infrutíferos, nossas palavras podem não adiantar, nossas atitudes talvez nem sirvam como exemplo. Mas existe a influência da nossa dor interna. A dor que contamina que comunica, e desgraçadamente pode educar ou deseducar.

 Hoje a inversão é total: um pequeno gesto de bondade passa a ser assombroso, enquanto que a violência é de casa, cotidiana. Esse é o contexto da nossa sociedade doentia, que derruba antigos valores éticos e morais sem substituí-los por algo que valha a pena, e que transforma qualquer ato estapafúrdio em espetáculo como o de Kevin na prisão frente aos holofotes ao dar a seguinte resposta ao entrevistador: “não estou fazendo papel. Eu sou o papel”. Mas a brutalidade da narrativa se dá através dos pensamentos e diálogos. Bruto no sentido do honesto, quando traz à tona a verdade nua, selvagem, sem retoques, implodindo as fachadas. Nada fica de pé. A primeira idéia que temos sobre a educação de uma criança é a de que ela precisa saber a diferença entre o bem e o mal. Mas a nossa principal função é a de cuidar para que ela não confunda o bem com a passividade e o mal com a atividade. Óbvio que não estamos criando assassinos em série, mas fazemos parte de uma única sociedade que precisa falar sobre as leis que se tornam travas morais, precisa falar sobre o João, falar sobre o Kevin, falar sobre nossos filhos, e principalmente falar sobre nós mesmos, entendendo que por “nós” seja aquela parte da gente que fica entrincheirada, que se recusa a fazer parte do todo, mas que, querendo ou não faz. Dorothy 01.mai.2012