Por Katia Mazzi
1) Quando era
criança olhava pro céu quase todas as noites, com ou sem estrelas. Nunca
perguntei nada, nem pro pai do Céu, nem pra mamãe. Eu sentia a grandiosidade e
a imensidão na qual estava inserida e a vontade de deitar no chão do quintal,
com os braços e pernas abertos, se consumava frequentemente, pra não dizer que
me consumia. Olhando pro anil, o olhar dormia e sonhava com a mesma noite. Eu
era o universo.
2) Internalizei essa questão e hoje ainda lembro de como
olhava o céu. Mesmo reprimindo o ato de deitar num espaço qualquer, sinto-me e
vejo-me dentro da escuridão clarificada. Sei quem sou e tudo parece maior que o
próprio tempo.
3) Lembro do amor de minha mãe. Estava ela sempre indo
de uma parte à outra de nossa casa, e lavava roupa, e fazia comida, e regava
plantas e nos levava à escola. Tenho um irmão e não sei se ele olhava tanto pro
céu como eu. Essas coisas não se percebem assim.
4) Jogava bola como todo menino sabe jogar e não me
deixava brincar com seus amigos, salvo quando queria fazer gols e, então,
estipulava que eu seria a goleira do time adversário. O cara é esperto.
5) Tento lembrar dos carinhos da maravilhosa mamãe. Eram
diferentes. Eram carinhos que penteavam os cabelos, vestiam-me roupas. Mas
aquele olhar eu jamais esquecerei, sempre dentro dos meus. Parecia que aquele
par de glóbulos escuros e saltados sabiam de tudo, do amor e da dor.
6) Adorava ouvir seu comando de voz, "vamos".
Aquele som de fato movia-me e eu sentia uma segurança tão concreta, só de estar
ao seu lado, indo, segurando sua mão e indo.
7) Também não apanhei e as poucas broncas foram
manifestas pelo mesmo olhar, um tanto mais severo. Eu ressentia e ficava pelo
chão, na tristeza abismal por ter magoado alguém que amava e admirava, quase
sem falar.
8) Pra que falar? Há coisas que são tão reais que mal
precisam de palavrórios. E foi assim que aprendi a amar, sem precisar falar do
amor mas sendo apenas o amor personificado.
9) Tinha medo quando ia dormir. Uma sensação de perda me
tomava, mesmo depois de ser beijada docemente por lábios amorosos. E acordava
como um sol, movida pelo mesmo lábio e beijo, pela mesma fada de um conto
qualquer. Felicidade existe.
10) Mas perdi mamãe.
11) Viagens faziam-me mal, e eu nunca soube explicar
esse contratempo. Sair de casa era sair da rotina e enjoava, enjoava.
12) As reclamações escolares frequentes, as notas
sofridas, a falta de atenção e pouco assento. Dificilmente me acostumaria
àquela ideia chata, de fazer uma coisa por vez, e sentada. Ninguém sabia ainda
sobre o TDAH e mamãe dizia à professora que eu só melhoraria se fosse tratada
com amor. Eu confirmava, balançando a cabeça.
13) De novo esse medo do escuro. Precisava de uma réstia
de luz qualquer, um poste de rua que não estivesse com a lâmpada queimada. Mesmo
assim, pensava na ausência daquela linda mãe e não imaginava nem dodói com
sangue, nem dor tão pungente.
14) Se os olhos dela não se movessem mais, eu também
não. E se os beijos me faltassem nas manhãs-tardes-noites, eu não mais.
15) Não aconteceu assim e eu jamais poderia supor o
quanto aprenderia sobre o verdadeiro amor. Que ainda me beija e pega a minha
mão e me penteia e veste. Enfim, caminho sem medo do escuro. E quando olho pro
céu, com ou sem estrelas, sorrio e ainda ouço: "Vamos ?"