segunda-feira, 11 de abril de 2011

Do português e outras providências

Por Dade Amorim




A língua portuguesa, a do Brasil em particular, vai sendo carcomida com rapidez e eficiência. No ritmo que vai, breve estará etimologicamente irreconhecível, gramaticalmente liquidada e sintaticamente mais deformada do que madame depois da décima plástica.
Não falo de expressões e regionalismos, que são parte da bagagem de qualquer idioma. Também não me refiro à gíria, às conotações que vão colando nas palavras naturalmente e só enriquecem a língua falada e até a escrita, dependendo do rumo escolhido. Estou pensando é na leviandade com que se escreve em alguns casos. Ninguém é obrigado a saber tudo. Mas dicionários e gramáticas existem para tirar as dúvidas que surgem na hora de redigir. E para o caso de projetos literários, existem técnicas, assim como para tocar piano e fazer massagem.
Somos todos ignorantes em muitas coisas. Passada a Antiguidade, mesmo os mais sábios entre os homens seriam incapazes de dominar todos os campos do conhecimento. Depois de séculos de avanço e efetivas conquistas, nossa ciência não deve saber ainda meio infinitésimo da realidade. Isso explica por que o conhecimento se tornou tão fragmentário, dividido em especialidades cada vez mais restritas, e por que são necessários conselhos regulamentares ou instituições que disciplinem cada setor. Excetuando-se os espertinhos de plantão, todo profissional que se preza sabe disso e respeita as normas de sua atividade.
Uma coisa no entanto me intriga: por que profissionais competentes em outras áreas acham que para escrever um texto não é preciso mais que juntar letras? Escrever um bilhete de qualquer jeito é compreensível e até perdoável, se você estiver com muita pressa. Uma carta, um parecer ou um artigo exigem um mínimo de decoro, assim como, com mais razão, fazer literatura.
Ouvi o contista Luís Vilela falar sobre isso, revelando que alguns jurados de concursos literários eliminam certos textos "pelo cheiro". Diante de um conto ou poema que comece mais ou menos como "o astro-rei subia no azul do céu", só resta um rápido exame para verificar se o texto em questão é uma paródia, gênero válido e digno de atenção. Não sendo assim, pode ser empilhado sumariamente com 80% das obras recebidas, todas escritas no mesmo tom menor. Falta atualização, conhecimento do métier, e muitas vezes o mais comezinho conhecimento da língua. Inspiração é um conceito meio mágico e, a não ser que se esteja falando do processo respiratório, em geral má conselheira. Tem que ser servida com molho de autocrítica, lastro de leitura e disposição para a pesquisa. Sem o que a gente pode se perder nos labirintos do verbo e ir parar no limbo cinzento e viscoso onde o astro-rei sobe no azul do céu e os autores sobem no telhado.