segunda-feira, 18 de abril de 2011

PROTAGONISTAS DE UMA AUTOBIOGRAFIA

Por Dade Amorim



Zuenir Ventura. Minhas histórias dos outros. Rio de Janeiro: Planeta, 2005. 272 p.

Se é que existe essa condição, a leitura do texto em que Zuenir Ventura conta as histórias de sua carreira, acompanhando os acontecimentos dos últimos 40 anos, faz dele um quase-amigo do leitor. Sua abordagem dos fatos, as descrições e o trato que dá a seus personagens reais pintam dele o retrato de um profissional que, consciente de sua responsabilidade e do alcance de suas decisões, nem por isso pretende fazer sombra a ninguém. Não é pouca coisa, nestes tempos de entrevistas truncadas ou boicotadas por jornalistas ou repórteres de ego avantajado.


 Mas não seria esse com certeza o objetivo principal do livro. O que ele visa explicitamente desde o título é uma narrativa que, partindo de um enfoque autobiográfico, põe em primeiro plano as pessoas com quem o jornalista interagiu durante as quatro décadas em foco. O jeito elegante de falar de seu próprio trabalho tem ainda a vantagem de registrar ângulos novos e pontos de vista originais, lançando novas luzes sobre episódios e personalidades já conhecidas de todos via mídia e registros da história recente.

 É verdade que qualquer biografia passa pelas vidas de quem figurou ou foi protagonista na vida do biografado. Mas quase sempre o dono da história, ou histórias, dá um jeito de ficar mais em evidência, ou porque o narcisismo fala mais alto, ou porque simplesmente é do senso comum – nem sempre ou quase nunca simétrico ao bom senso – que o autobiógrafo quer se fazer entender e notar acima de qualquer outro interesse. Zuenir consegue a proeza, não muito freqüente, de contar sua própria história sem falsa modéstia ou humildade, dando aos outros sua justa dimensão e importância, o que os situa realmente no primeiro plano em cada capítulo.

 Lutas, alegrias, dúvidas, sucessos, dificuldades e frustrações são descritas com a objetividade e o despojamento da boa linguagem jornalística. Do ponto de vista do leitor, relacionamentos, amizades e desamizades ficam bem torneados, caracterizados na justa medida em que a isenção não afeta a emoção nem o ressentimento impede a elegância.

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Mais do que um bom começo

Marguerite Yourcenar. Alexis ou O tratado do vão combate. Trad. Martha Calderaro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

A carta de um homem à mulher que ele deixara é o tema de Yourcenar em seu primeiro livro, original datado de 1927-28, aqui na excelente tradução que Martha Calderaro, já conhecida pela perfeição com que dera conta de Memórias de Adriano, traduziu “para conceder férias a mim mesma” – “férias quanto à facilidade do estilo, à suavidade das frases, e não quanto à densidade do conteúdo humano nele revelado”.

Na verdade, esse texto revela uma coerência e uma coesão dificilmente encontráveis numa autora de 24 anos. O estilo sutil não ofusca o espantoso conhecimento das pessoas e todas as percepções que, tão nova ainda, Marguerite já registrara. Um exemplo mínimo: “A paixão exige gritos; o amor, porém, satisfaz-se com palavras, enquanto a simpatia pode ser silenciosa. (...) Conheci-a em silêncio, porque aqueles que a inspiraram não a compreenderiam; aliás, não é necessário que alguém a compreenda.”

O perfil até certo ponto gideano traçado em Alexis é o de um músico sensível ao extremo, tímido, problemático quanto ao equilíbrio emocional e desajustado em sua época. Ele mesmo descreve sua dificuldade de encontrar “novos rostos” e interagir com seus semelhantes.

Mas as dificuldades de convivência e compreensão entre as pessoas não foram nunca apanágio de uma época. Do ponto de vista do preconceito e do modo como as pessoas lidam com temas considerados polêmicos ou “delicados”, só varia de uma para outra sociedade o grau do silêncio que os envolve: quanto mais puritanismo e preconceito, mais espesso o silêncio em torno de tais assuntos. Não se extirpou ainda e parece que nunca se extirpará de todo o preconceito contra o homossexualismo no mundo dos homens. Na época em que foi escrito o livro, apenas se abria uma estreita brecha para deixar passar o assunto.

O texto no entanto não é interessado, não reivindica nada. Não existe pragmatismo; não se trata de dissecar princípios ou idéias nem de se situar a respeito. Não é essa portanto a novidade ou a utilidade do texto de estréia de Yourcenar. A beleza é sempre uma novidade absoluta e nunca será de nenhuma utilidade. “Os livros não contêm a vida – diz ela. – Contêm apenas as suas cinzas.” Mas que cinzas!