domingo, 17 de abril de 2011

SENHORA DO TEMPO. MEU GRUPO ESCOLAR

Por Vera Guimarães

Em 2010 o Grupo Escolar Prof. Arthur Bernardes, o meu grupo escolar, completou 100 anos. E me pus a pensar nele. Lá estudei de 1949 a 1952.

A foto abaixo pega direitinho o calor, o mormaço tremulando, o céu azul, a lagoa plácida, a calçada por onde tantas vezes andei para chegar à escola. O poste da foto separa o “Arthur Bernardes” do Colégio Dom Silvério.

O prédio se localizava no centro comercial, cultural e de lazer da cidade. Nas suas imediações ficavam os cinemas, a lagoa e seus barquinhos, as lojas, hotéis, agências bancárias, os pontos de ônibus...  Ainda é assim, embora se tenham criado outros pólos de atração, outros centros, até shopping centers.

O “Arthur Bernardes” era uma das construções mais imponentes da cidade. Majestoso, nobre, imenso, o prédio dominava a região. Às varandas em curva se chegava por escadarias externas, cujos degraus eram revestidos de, provavelmente, mármore. Essas escadarias eram um “ponto turístico” da cidade, cenário para fotos. Esta é minha turma do último ano de Contabilidade (curso técnico de nível médio) posando para a posteridade.


No corpo central, entre as duas varandas, ficava o salão nobre, um reduto de mistério e luxo, de acesso restrito, com seu palco, cortinas e piano, onde aconteciam as sessões cívicas, as aulas de canto orfeônico, as apresentações de peças teatrais e de números de dança, comemorações de datas festivas, bailes de formatura. Ali também se localizavam a diretoria e a biblioteca.
Nós, os alunos, entrávamos para as aulas pelo térreo, que chamávamos de “porão”, onde ficava a cantina. Ao chegarmos ao pátio interno, subíamos escadaria que nos levava ao 2º andar.

Ali, nos corpos laterais do prédio ficavam as salas de aula, ao longo de corredores avarandados protegidos por gradeados de ferro, com piso de ladrilhos coloridos, voltados para o pátio. Nas salas amplas, de pé direito alto e enormes janelas, sentávamo-nos em sólidas carteiras duplas, com base de ferro fundido e assentos e tampos de madeira maciça. Esses tampos, providos de sulcos para os lápis e as canetas e de furo para o tinteiro, se levantavam e revelavam gavetas para o material que não estivesse em uso.

Reparo agora que praticamente só falei do prédio. É claro que nesse período eu tive experiências marcantes, decepções colossais, vitórias monumentais, amizades genuínas, descobertas e deslumbramento. Por exemplo, ao falar do salão nobre, não falei do tanto que desejei ser escalada, numa festa de fim de ano, para o número “Pintinhos no Terreiro”, delicioso chorinho de Zequinha de Abreu, dançado por meninas com vestidos iguais de organdi, as saias rodadas, turbantes na cabeça, cesto à cintura de onde eram lançados imaginários punhados de canjiquinha e fubá para os ditos pintinhos. Acho que pouparam minha família das despesas com roupas que nem se aproveitariam depois.

Em vez de dancinhas e música, me deram uma fala num número sombrio com referência a Marcílio Dias, um marinheiro herói que perde um braço numa batalha e continua lutando.

Ao falar da cantina, não mencionei os sentimentos desencontrados que ela me despertava. Lá se servia a sopa ou mingau ou outra merenda para os alunos pobres, os alunos da “caixa escolar”. Eu sentia vergonha por aquelas crianças, eu não queria me associar a elas, tinha medo de pertencer àquele mundo delas, eu sabia que havia algo errado no apartheid, mas também sentia que meus sentimentos quanto a eles não eram nada nobres. Mundo estranho esse da minha cabeça já naquela época!   

Em resumo, foram quatro anos cheios de revelações, medos, enfrentamento dos medos, novas amizades, rejeição (ou impressão de rejeição), acolhidas preciosas.  

Voltando ao prédio, me dou conta de que a nobreza da construção correspondia à importância que se dava à educação. Aquela construção majestosa nos motivava a crescermos e estarmos a sua altura. Ainda que qualquer vida fosse modesta, ao adentrar aquele universo, a pessoa “sentia um acréscimo de estima por si mesma”, como disse Eça de Queiroz.

Da mesma forma como se usavam materiais nobres na construção, como mármores, ladrilhos desenhados, grades trabalhadas, o material humano também era de primeira qualidade. As diretoras e professoras eram moças e senhoras alinhadas, preparadas, comprometidas com a transmissão de conhecimento e valores.



Aqui está meu grupo escolar, hoje Escola Estadual, com a majestade de sempre e a pintura que ostenta hoje.

Todo mundo merece o “Arthur Bernardes” que tive na infância.