quinta-feira, 24 de novembro de 2011

DIANTE DA PALAVRA RADIOFÔNICA

Por Lilian Zaremba









Valère Novarina

As palavras... sempre estiveram no ar...
Nas frases da retórica, nos versos da poesia, nos hiatos do silencio...
Mas como alguém pode estar... diante da Palavra?

A palavra um dia deve ter sido célula nervosa saudável, imaginou William Burroughs...mas tornou-se impulso compulsivo, onipresença interior que nos sequestra a noção de silencio criando...um organismo parasitário, que invade e danifica o sistema nervoso, resistente e...força você a falar.
Mas, em se tratando de falar no rádio, não apenas a palavra, mas a voz, este corpo de nuances sonoras habilita suas leis...

A preocupação técnica com a clareza da transmissão exposta a ruídos e interferências, acabou deslocada para a limpeza de todos os elementos que poderiam ameaçar esta clareza: sussurros, respirações, salivações, rouquidão, e como diria Novarina...“...todas as impurezas que marcam a natureza animal e material das palavras produzidas pelo corpo humano”.


tentando acabar com o julgamento redutor



Quem se preocupou em destacar esses limites da palavra no rádio foi ele... o projeto radiofônico de Antonin Artaud avançou feroz na demolição dessas exigências estéticas e suas normas de pronúncia das palavras.Liberou sonoridades, mas sobretudo, liberou as vozes.
Artaud realizou “Para acabar com o julgamento de Deus”, em 1947, construindo sua plástica radiofônica na representação sonora da loucura humana: vozes demoníacas e seu próprio sofrimento e solidão amplificados. Ficaria insatisfeito com o resultado por conta da tecnologia da época, todos os efeitos sonoros acabaram achatados naquela transmissão em apenas um canal... e declarou:
“...onde existe a máquina sempre existe o nada e o abismo...ali existe a intervenção técnica que deforma e aniquila o que alguém tenha feito”.

Neste mesmo ano de 1947 em que Artaud se aventura pelas ondas do rádio, André Jolivet estréia versão radiofônica de sua ópera bufa “Dolores”...enquanto na Ópera de Paris George Bizet apresenta sua música para arte abstrata, o ballet Palácio de Cristal”...eFrancis Poulenc escreve música para dramasurrealista escrito por Apollinaire ou uma peça musical breve sobre o nome de Albert Roussel...

o tempo passou e a tecnologia avançou

Muito tempo se passou desde então...a tecnologia de áudio avançou tremendamente... agora, outro ator francês sintoniza a palavra no rádio...Devant la Parole...Diante da Palavra.
“....a experiência singular que cada falante faz, cada falador daqui, de uma viagem da fala”... escreveu Valere Novarina, que abre seu livro com a frase do poeta Gérard de Nerval:“A neve cobria a terra”.
Valere Novarina nasceu em Genebra no ano em que Artaud fez sua emissão de rádio, 1947.Tornou-se escritor, dramaturgo, fotografo, ator, pintor, pensador da palavra. Seus textos encontraram uma tradutora para língua portuguesa: Ângela Leite Lopes, que explica:
“...a intenção de Novarina é acabar com a indústria da explicação e fazer a arte usar a linguagem como criação, não como mensagem ou produto”...

Em 2011 Angela Leite Lopes apresentou em livro sua tradução para “O teatro dos ouvidos” peça radiofônica escrita por Novaria em 1980. Sendo o rádio um lugar aonde o espaço é o tempo e a visualidade uma conjugação da memória eletiva, é quase instantâneo fazer a ligação direta entre o teatro de Novarina e rádio. Para quem não conhece, a seguir, alguns destaques deste Teatro dos Ouvidos...
“ele pensava ter arquitetado um método para fazer sua boca dizer tudo que quisesse. Queria dobrá-la, submetê-la todo dia ao treino respirado, torna-la firme, flexível, dar-lhe músculos... até que ela se transformasse numa boca sem fala, até falar uma língua sem boca...”
“...ele ouve a língua na sua fala...em língua sem palavra...em dança imóvel.
“...ele teria querido desaprender, não falar mais uma língua que nos foi ditada...
tinha usado a linguagem como um animal, renunciado à sua cabeça, renunciado a ser, pela língua, o mestre das coisas”.

O Teatro dos Ouvidos, proposto por Novarina, é uma forma de persistir em ampliar a escuta, para além das amarras definidas por linguagens impostas. Este esforço é um contínuo na História, incluindo discursos do cotidiano, como aqueles gritos medievais...
Os gritos dos vendedores de rua, algo comum nas cidades que começavam a surgir nos séculos medievais, acabaram servindo de inspiração para compositores como Édouard Deransart ,Clement Janequin e Vicent Bouchot, escreverem seus “Os gritos de Paris”Diante da Palavra,Rádio Mirabilis-Lilian Zaremba- MEC FM
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sugestão de leitura :

“Diante da Palavra”
“O teatro dos Ouvidos”
livros de Valere Novarina, traduzidos por Angela Leite Lopes
editora 7 Letras / coleção dramaturgia

sugestão de escuta :

“Les Cris de Paris” ou seja, “os gritos de Paris”, transformados em músicas por Édouard Deransart no século 19, Clement Janequin, no século 15 e e Vicent Bouchot, no século 20.Gravações realizadas pelo Ensemble Janequin, sob direção de Dominique Visse.


rádio mirabilis de Lilian Zaremba