Por Dade Amorim
Cristóvão Tezza. A suavidade do vento. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. 210 p.
Premiado com uma Bolsa Vitae de Literatura, o livro de Tezza surpreende por mais de uma razão. Primeiro porque faz lembrar Machado, pelo jeito como o narrador se dirige ao leitor. Certas considerações são também machadianas na descrição de personagens e ambientes, assim como nos diálogos e acima de tudo na ironia que rege toda a obra. É também um livro alegórico – lembrai-vos do delírio das Memórias póstumas –, mas aqui o autor utiliza com agilidade e segurança os monstros e monstrinhos com que Hyeronimus Bosch povoou algumas de suas pinturas – o toque de grotesco que acompanha o sofrimento humano. O efeito final é uma forma de humor negro cujo epicentro é um personagem emblemático de todo angustiado, quase um arquétipo. Os monstros são indiferentes ao sofrimento, mas são ativos, não perdem tempo. Talvez personifiquem a crueldade alheia, ao mesmo tempo em que também projetam a incapacidade de Matozo para enfrentar os outros, sua insegurança e a atitude defensiva que decorre dela. Mas os monstros são o triunfo possível do professor Matozo contra seus supostos inimigos, porque são imaginários, porque ele os manipula e é mais que eles.
Ao mesmo tempo, esse personagem sufocado pelo ambiente tosco que contrasta com a gradiosidade de seus sonhos é uma farsa, que o autor desmistifica num contexto teatralizado em que a ambigüidade joga suas peças com mestria.
Domesticado, socializado, arestas polidas e cantos arredondados, o homem se acomoda, medianamente contente consigo e com a vida – ou representa com talento de ator o tipo bem ajustado e produtivo. Outros, como acontece ao herói de Tezza, carregam suas dores em carne viva por onde vão. A custo disfarçam o peso da existência, porque quanto maior a fragilidade, mais embaraçoso e insuportável é exibi-la aos olhos do mundo, e nesse ponto tecem a própria prisão viciosa, que não deixa abertura à solidariedade. Mais que irônico, chega a ser cruel. Não da crueldade em série, banalizada, que se vê no cinema, na literatura e nos jornais de nosso tempo, mas de uma crueldade incruenta e peculiarmente humana que às vezes faz lembrarDogville do von Trier.
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AS MORTES QUE O TEMPO TRAZ
Paul Auster. Noite do oráculo. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 224 p.
Narrado em primeira pessoa, segundo o próprio Auster a única relação entre ele e o narrador é a forma como conheceram suas esposas.
Noite do oráculo – uma leitura capaz de atordoar – é desses livros que só se pára de ler na última linha da última página. As histórias saem umas de dentro das outras, como aquelas bonequinhas russas, e são histórias do passado (uma escritora já falecida que a neta quer editar) que o presente (representado por Sidney Orr, o personagem escritor) inclui em sua própria história sob a forma de leitura de seu personagem editor, ao tempo em que cria uma história por vir, calcada num personagem de O Falcão maltês, de Dashiel Hammet. Os personagens se misturam e pelo menos um nome comparece em duas histórias – sem contar a participação do chinês da papelaria, que atiça a imaginação do leitor e do autor, para levá-lo de volta à vida e à produção literária, interrompidas por um longo período de internação hospitalar. Há o anagrama do nome de Auster em seu amigo Trause. E há ainda a guinada que representa uma “outra vida”, quando a que vinha se arrastando é sacudida por algum acontecimento ameaçador, que assume o lugar da morte como fim do que já não interessa manter vivo.
Essa clivagem do tempo é uma espécie de fábula sobre a possibilidade de interposição de seus estágios, o que pode representar uma ameaça – o inesperado golpe final, o que nos prepara o futuro – ou a promessa de uma felicidade na qual é impossível acreditar irrestritamente. É um tempo sujo, misturado, em que nada é puro ou garantido. Quando as coincidências e repetições prefiguram a morte. E aqui a escrita representa um papel específico: ela tem o poder de desalojar o futuro de sua instância convencional para anunciar ou pressentir o que está ainda resguardado no homem do presente, ensinando-lhe a repetição possível do que não é desejado, mas não depende de nós.