Esther Lucio Bittencourt
Carla Bruni-Sarkozy, primei- ra-dama da França afirma que tem consciência que é “apenas a cereja do bolo, mas que faz o possível para ser uma ótima cereja”. Triste metáfora; neste momento a mulher se coloca apenas como objeto de enfeite. O mundo realmente mudou e, para pior. A cada avanço social somos punidos por retrocessos. Parece-me que este é o destino da humanidade. Não gostaria de acreditar nisso, mas vendo o mundo de hoje, como seres humanos – mulheres e homens se comportam – e me reportando a um passado de cerca de 40, 50 anos, quando se lutava por uma independência em todos os níveis: social, econômica, feminina, sexual, política; vejo que apenas vingou – nem digo a liberdade, mas o destempero sexual onde as pessoas se perdem do seu próprio eu e mergulham na futilidade.
Tenho a impressão que hoje o Brasil caminha na contramão desse vazio de objetivos, perspectivas e alma. De repente, sinto a energia e a alegria das décadas de 60 e 70, quando nós mulheres começamos a descobrir o nosso corpo e a nossa voz e, mesmo sabendo que as referências históricas não são preservadas na memória dos jovens de hoje, memória que pode ser recuperada numa sala de aula, no estudo, na internet, nos livros, com boas exceções, aos 68 anos hoje eu me sinto como se eu tivesse os meus 20 - 30 e poucos. O mesmo sangue de entusiasmo que corriam em minhas veias permanecem hoje.
Pela primeira vez na história do Brasil, uma mulher tem sérias condições de ocupar a presidência dessa Nação. Bastaria este fato para concluir que o País não teme cometer o mesmo engano dos Estados Unidos (EUA), onde liberais e democratas impediram por vários motivos a ascenção de Hillary Clinton ao poder em detrimento de Barack Obama, atual presidente dos EUA, que hoje enfrenta uma enorme rejeição popular em vias de perder a sua pouca governabilidade caso se concretize as eleições durante essas semanas de republicanos para o Poder Legislativo.
Dilma Rousseff, esta senhora de 62 anos, que teve um neto recentemente, ascende nas mulheres o prazer do feminino. A alegria da certeza de que hoje superamos a escravidão; e mesmo com pouco reconhecimento, menores salários que os homens, menos respeitadas do que eles, podemos aspirar a dignidade máxima de praticar o voto não só político partidário num projeto que provou ser consistente no Brasil, mas a cumplicidade de estar votando em uma outra mulher – que como nós viveu a década de 60 e batalhou para que esse sonho se concretizasse.
Hoje, esperando o amanhã, 31 de outubro de 2010 – e eu sei que esta crônica já está datada – eu lembro de Carmen da Silva, que através dos seus artigos na revista Cláudia, iniciou na ocasião a tomada de consciência da mulher como ser humano capaz de conduzir o seu destino.
Lembro de Carmen na Cinelândia, no Rio de Janeiro, e tantas outras mulheres numa passeata na luta de seus direitos, vestindo camisolas, exibindo seus sutiãs, rasgando anáguas, provando que as mulheres não eram apenas mães, mantenedoras, mas principalmente, as que organizavam o destino da humanidade.
Dilma Roussef é desse tempo. Ela afirma que quando uma mulher se zanga o assunto é resolvido em definitivo. Ela não tem medo de enfrentar o câncer linfático, caminhar com o pé quebrado, falar com a voz cansada e rouca sobre seus projetos para o país, responder as perguntas dos jornalistas, cercada por eles, sem ter medo de qualquer abordagem, segurar seu neto recém-nascido ao colo, ter um gestual incisivo ao afirmar suas convicções e, ao mesmo tempo, exibir sua fragilidade de ser humano. É uma lutadora.
Luta contra doença, por seus ideais e para manter um país numa rota de sucesso iniciada no governo Lula.
Nesse momento em que o padrão feminino de beleza é magreza, é bem vestir, o estar ao lado de um homem de sucesso significa status, quando a roda do mundo girou ao inverso do que foi proposto a 40, 50 anos, o Brasil perpetuou sua ambição de ser único e obedecer a um ideal que foi traçado pot toda uma geração – da qual, querido(a) leitor(a), você é filho(a) ou neto(a).
Amanhã à noite, estarei vendo pela TV o resultado desta eleição que, espero, cumpra a promessa da luta que foi travada por nós mulheres na busca do auto-respeito e auto-conhecimento.
Não estou pedindo a ninguém que vote em fulano ou beltrano. Falo da minha emoção e admiração por uma mulher que vencendo o câncer linfático, assim como Susan Sontag venceu seu câncer de mama desmitificando o peso da doença que funciona até hoje como estigma que não pode ser superado, sentirei profundamente a falta de Carmen da Silva, com quem andei na Cinelândia no dia de luta pelos valores femininos.
Não sei se hoje ela votaria em um ou outro candidato. Naquela época não havia PT, não havia PSDB. O ideal não estava embutido em questões partidárias. Mas sim, na necessidade de provar-se como capaz de superar qualquer desafio por mais difícil que fosse ele definido, pertencente ao mundo masculino.
Às barrigas quentes do fogão, aos ventres molhados da água do tanque, às cabeças que carregaram trouxas, as mãos que cozinharam para sustentar maridos e filhos, a estas pessoas que na realidade forjaram o mundo que se tinha prazer e orgulho em viver e pelas quais se exigiu direitos iguais, pertencem o dia de amanhã. Seja na vitória ou na derrota de Dilma Rousseff, porque ninguém será capaz de tirar o sabor de vermos uma mulher com qualidade e com todos os requisitos necessários para dirigir uma nação.
E se houver vitória de Dilma, a estas mulheres mortas ou vivas pertencem este momento. Porque se eu hoje estou aqui escrevendo sobre isso, se a Ana Laura Diniz pode dirigir o Jornal Primeira Fonte, se a Fal Azevedo pode postar seu artigo na terça-feira, se a Telinha Cavalcanti divide uma receita de sua mãe, se a Deda Amorim resenhou sobre o livro que lhe agradou, Bartleby e companhia, é somente porque nossos antepassados serviram o ajantarado de domingo, cultivaram a família, curaram nossos ferimentos, ouviram os homens da casa e atenderam as suas necessidades formando a estrutura econômica e social que hoje conhecemos.
Um dia, tenho certeza, que algumas dessas moças que hoje desejam ter um homem como status ou a beleza como paradigma, amanhã desejarão ter cultura e conhecimento para levar adiante o projeto de uma nação.