domingo, 14 de julho de 2013

SENHORA DO TEMPO: LADEIRAS DE BH





 Vera Guimarães




 A cidade do interior onde vivi até os 18 anos era (é) relativamente plana, e até o final da década de 1960 tudo ali se fazia a pé.

Já Belo Horizonte é cidade não apenas cercada de morros, mas seus bairros se espalham por colinas, serras, elevações diversas. Enfim, as montanhas alterosas.

Lá vivi dos 18 aos 52 anos, e foi ali que ocorreram todos os eventos de minha vida adulta: fazer faculdade, trabalhar, me divertir, ir e vir, abastecer a casa, levar filhos a médico e escola... Então, transitar pela cidade.

Morando na Serra (olha o nome) e estudando na então FAFI-UMG no Santo Antônio, fiz muitas vezes o percurso casa-escola a pé, freando para descer a Contorno, na altura do Cruzeiro, e bufando para subir a mesma Contorno para chegar à Carangola. Mesmo em outros endereços, sempre encontrei uma ladeira para vencer. Mas eu era jovem...

Mais tarde, já de carro, conheci verdadeiras pirambeiras. Até hoje ainda me espanto com o declive da rua Carlos Gomes para desembocar na Prudente de Morais. Por que eu me aventurava por ali? Com certeza haveria alternativa menos estressante. Da Barroca para o Gutierrez, havia também uma descida assustadora, não me lembro mais em qual rua.

Sobrinhos cariocas, acostumados à planura de Ipanema, quando em férias conosco, ficavam aterrorizados sempre que descíamos a Contorno no chamado Tobogã.

Até agora só falei das descidas apavorantes. Já as subidas demandavam motoristas habilidosos no controle de embreagem, já que não existiam carros com transmissão automática.

Para levar as crianças ao colégio, tínhamos que vencer o violento aclive da rua Campos Elíseos, na Barroca. Em uma manhã chuvosa, patinamos e não saímos do lugar. Na época, tínhamos a querida Belina amarela, amarela, não, mostarda, de tração dianteira. Marido, engenheiro mecânico, manobrou e pôs a frente do carro na direção contrária à que nos dirigíamos, e assim, de ré, ridiculamente subimos a ladeira escorregadia. (Ele tenta me explicar a lógica da coisa, peso sobre o eixo motor, aderência etc...) Só sei que por diversas vezes fiz essa manobra bizarra e não faço ideia do que os passantes imaginavam à visão de um carro cheio de crianças subindo a rua de ré.

Essa não foi a única circunstância em que a dócil Belina andou pra trás. Voltando de chácara que tínhamos, o câmbio quebrou de tal maneira que só aceitava ré e ponto morto. Quer dizer, nos 16 quilômetros entre Funilândia e Prudente de Morais, andávamos de frente nas descidas e no plano, até onde nos levava o embalo; depois virávamos o carro para vencer o plano e os aclives. Se nem todas as crianças se divertiram com isso, tenho certeza de que o mais novo, até hoje aficionado por carros e suas manhas, se interessou pelo caso, deu palpites, ajudou e curtiu as manobras, não foi, Lucas?

Hoje morando no Planalto Central, exatamente em Brasília, mais ando de carro que a pé. Sempre se disse que o brasiliense tem cabeça, tronco e rodas. Se eu for andar, mais encontro planuras que ladeiras.

Neste julho de 2013 passei uns dez dias em BH. De onde eu estava tudo se alcançava como pedestre: supermercado, cinema, praça, shopping, restaurante, clube. E muito andei, com prazer. Mas, velha que sou, confesso que sofri todas as vezes que tive que enfrentar a última ladeira até chegar ao apartamento da minha filha.

Por coincidência, antes que me viessem essas lembranças, e a propósito de outros assuntos, consogra me conta que meu genro sofreu violenta contratura na panturrilha e que, cheio de dor, ao encarar a referida última ladeira, se vira e completa o trecho de fasto.

Não é que nós, bípedes humanos, tal qual os automóveis quadrúpedes, também temos tração dianteira?

 Fig. 1- www.notícias.r7.com
 Fig. 2 – do acervo familiar: filha mais velha, a Belina, a chácara no cerrado, talvez 1980.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

SENHORA DO TEMPO: LEQUES, ABANOS E VENTAROLAS



Patricia Caetano, ilustra mais uma crônica de Vera Guimarães, publicada em 16 de dezembro de 2012, e republicada hoje. As cores de Patrícia, seu traço, remetem-me à exuberância de Frida Kalo, ao calor, à vida. Esta menina precisa ser entrevistada.
elb



 Ilustração de Patrícia Caetano


Vera Guimarães

Amiga me conta que em recente confraternização de fim de ano foi assediada como nunca, e atribui o fato à circunstância de estar usando um leque. Bobagem! Linda e na exuberância de seus 40 anos, nada mais natural que os moços quisessem se aproximar dela.


Ah, o leque! É mesmo! Na minha adolescência, década 1950, ele era acessório natural e obrigatório nas sessões de cinema e em outras ocasiões. As salas não eram climatizadas e sempre queríamos acrescentar um charme à produção. O meu leque era branco, pequeno, varetas de madrepérola, e, nelas, vazados formando arabescos. Perdeu-se no desgaste das fitas que uniam as varetas, nas mudanças de casa, no desuso.

Depois dele, em passeio num parque aquático dos EUA, precisei espantar o calor e comprei numa das lojinhas de souvenir um abano feito de palha trançada, com a etiqueta Made in Philippines. Esse está comigo até hoje e compõe um painel de outros objetos de fibra, a maioria chapéus.
Há cerca de dois anos ganhei um leque. Na ocasião fiquei agradavelmente surpreendida com a escolha do presente, nem cogitava que eles ainda existissem assim corriqueiramente. Apesar de apreciá-lo, nunca o usei. Vou corrigir isso.

A importância desse objeto utilitário, estético e testemunho de épocas fica patente no complexo de Greenwich, onde existe um museu dedicado exclusivamente ao leque. E a prova de que ele continua despertando interesse até mesmo econômico está nessa sofisticada loja. Ali você pode encomendar leque personalizado para o seu casamento, leque com estampa moderna ou clássica, há linha exclusiva para homens, para publicidade, para comemorações.


Recursos para refrescar o indivíduo ou o grupo existem desde sempre. Na caverna quente, alguém pegou uma folha grande ou talvez as asas de um pássaro e as agitou na frente do rosto, produzindo um ventinho gostoso. À medida que se descobriam novos materiais e que se desenvolviam novas habilidades, com certeza esses objetos foram aperfeiçoados. O que nunca faltou foi inspiração na natureza.

Leques foram e são largamente utilizados no Oriente. Há registros antigos deles na Assíria, China, Japão, Índia e Oceania. Eram confeccionados em madeira, bambu, papiro, seda, madrepérola, cascos de tartaruga, fibras vegetais, plumas. Eram entalhados, pintados, bordados, esculpidos, pirogravados.
Foram trazidos para o mundo ocidental por ocasião das Cruzadas. Muito tempo depois, se sofisticaram e passaram a compor o vestuário e os rituais sociais das cortes dos séculos XVII, XVIII e XIX. Vejam aqui mais detalhes curiosos.

Cria-se, no contexto mundano e frívolo de certas cortes, a linguagem do leque, um complicado sistema de comunicação baseado no posicionamento do adereço em diferentes partes do corpo, no grau de abertura das varetas, no ritmo da abanação etc., através do qual se mandavam recados. Alguns desses códigos:

• Colocar o leque junto ao coração: Conquistaste meu amor.
• Tocar com a mão no leque ao abaná-lo: O meu desejo era estar sempre junto de ti.
• Acariciar o leque fechado: Não sejas tão imprudente.
• Tocar com o leque meio aberto nos lábios: Podes me beijar.
• Tocar o leque na face direita: Sim.
• Tocar o leque na face esquerda: Não.
• Fechar e abrir o leque várias vezes: És cruel.
• Abanar o leque muito depressa: Estou comprometida.
• Segurar o leque na mão direita e em frente à face: Segue-me.
• Colocar o leque junto da orelha esquerda: Quero ver-me livre de ti.
Passar o leque pela testa: Tu mudaste.

Aqui tem mais códigos.


Algo me ocorre! Embora eu sustente veementemente que minha amiga foi assediada em função de seus dotes físicos e de sua sensualidade, fico pensando: como será que ela teria usado o leque?! Passou com ele alguma mensagem de que nem ela mesma se deu conta? Não! Não pode! Por mais explícito que pudesse ter sido o recado, duvido que algum cavalheiro de hoje fosse capaz da sutileza de decifrá-lo.

Fig. 1 - http://belissime.blogspot.com.br/2010/08/leque-glamour.html
Fig. 2 - http://petarnews.blogspot.com.br/2010/11/fauna-e-flora-do-petar.html
Fig. 3 - http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/c8/Pontes_Collection%27s_fans.jpg


quarta-feira, 10 de julho de 2013

SENHORA DO TEMPO : EU E A BICICLETA

 

A crônica de Vera Guimarães, Eu e a Bicicleta, foi publicada em 11/12/2011. Faz tempo!

Hoje está republicada porque Patricia Caetano fez a ilustração abaixo, para a mesma:  

 

EU E A BICICLETA

Por Vera Guimarães


Recentemente, em Pirenópolis, GO, visitamos o   MUSEU RODAS DO TEMPO .
Num espaço muito bem cuidado e agradável, estão expostos veículos de duas rodas, motos de diversos países e épocas. E como a moto se originou da bicicleta, um bom pedaço do museu é dedicado a ela, a magrela, a bike. Os idealizadores do museu tiveram a gentileza de acionar artesãos, verdadeiros artistas, que fizeram réplicas das primeiras engenhocas, o celerífero, a draisiana e a bone shaker (chacoalhador de ossos). 



“A história da bicicleta começa de fato com a criação de um brinquedo, o "celerífero", realizado pelo Conde de Sivrac. Construído todo em madeira, constituído por duas rodas alinhadas, uma atrás da outra, unidas por uma viga onde se podia sentar. A máquina não tinha um sistema de direção, só uma barra transversal fixa à viga que servia para apoiar as mãos.” 
roberto-menezes.blogspot.com



elquivalleyclub.cl/cic
“O alemão Barão Karl von Drais, engenheiro agrônomo e florestal vindo de família de posses, pode ser considerado de fato o inventor da bicicleta. Em 1817 instalou em um celerífero um sistema de direção que permitia fazer curvas e com isto manter o equilíbrio da bicicleta quando em movimento. Além do mais a "draisiana" vinha com um rudimentar sistema de freio e um ajuste de altura do selim para facilitar o seu uso por pessoas de diversas estaturas.”



“James Starley, um apaixonado por máquinas e responsável pelo desenvolvimento das máquinas de costura fabricados pela Coventry, decidiu repensar este biciclo e acabou criando um modelo completamente diferente. Tinha construção em aço, com roda raiada, pneus em borracha maciça e um sistema de freios inovador. Sua grande roda dianteira, de 50 polegadas ou aproximadamente 125 cm, fazia dela a máquina de propulsão humana mais rápida até então fabricada.”
presenteparahomem.com.br






O mais incrível é que Leonardo da Vinci já havia feito projetos muito mais elaborados para um veículo de duas rodas, provido de muito mais recursos que os dos modelos acima. Será verdade? 
“O primeiro projeto conhecido de uma bicicleta é um desenho de Leonardo da Vinci sem data, mas de aproximadamente 1490. Só foi descoberto em 1966 por monges italianos. 
Os princípios básicos de uma bicicleta estão lá: duas rodas, sistemas de direção e propulsão por corrente, além de um selim.”

Estas e muitas outras histórias compõem a memória da bicicleta, contada aqui: escola de bicicleta




Já as MINHAS lembranças, suscitadas pela visita ao museu, incluem as bicicletas como as conhecemos hoje e remontam aos meus verdes anos, lá pelos seis, sete anos. Meu irmão mais velho, muito meu amigo, me botava no quadro da bicicleta e me levava com ele quando ia namorar. Eu adorava esses passeios. Naquela casa agradabilíssima, de pessoas gentis, era servido um delicioso café com quitandas. Quando o sono me vencia, eu ia para o quarto de passar roupa e desabava na cama onde se empilhavam perfumadas roupas recém-lavadas. Não sei como ia embora.

Algum tempo depois, já com turma, inventávamos passeios pelos arredores, piqueniques, idas ao Posto Agropecuário, tudo fora da cidade. Eram passeios deliciosos, alegres, festivos e... arriscados, claro, que a gente abusava do Anjo da Guarda. Não tínhamos bicicleta feminina, então eu calçava a cara e pedia emprestada a de alguma amiga da família. Obrigada, Ilma Francisco!


Aos 15 anos, já trabalhando, uma irmã e eu nos associamos e compramos a desejada bicicleta a prestação, uma linda PHILLIPS inglesa, cor vinho, aro 26. Com ela íamos ao trabalho, minha irmã visitava as muitas amigas, eu ia aos treinos de vôlei na Praça de Esportes, à igreja, dava voltas na lagoa. Que linda ela era! 


Até os selos espalhados pelos componentes da bicicleta atestam como tudo era feito com carinho e requinte.
«http://www.8p.com.br/bestservice/flog/a60001949/#a60001949

Nas décadas 1940/1950 nossas ruas exibiam profusão de bicicletas, usadas não apenas para lazer. As pessoas iam e voltavam pedalando no trajeto casa-trabalho, pais levavam crianças à escola, verdureiros transportavam sua mercadoria em bicicletas, mensageiros se deslocavam de um ponto a outro da cidade. A via pública era democrática e acolhia a todos com generosidade, fossem caminhões, bicicletas, automóveis, carroças, pedestres, cavalos. Era a política do compartilhamento do espaço urbano, com grande dose de paciência e respeito a todos. 

Infelizmente isso aqui desapareceu. Já em grandes cidades europeias incentiva-se cada vez mais o uso de transporte não poluente e não atravancável. Em Paris, o projeto VÉLIB como alugar uma bicicleta em Paris é um sucesso. Em Amsterdam, executivos bem arrumados transitam vestidos com elegância, portando suas pastas executivas, em bicicletas bem velhinhas, nem um pouco ostentatórias. Jovens mães atrelam caixotinhos às suas e ali colocam as criancinhas, e compartilham a via pública com carros e enormes trens urbanos.

Por falar em bicicleta e Amsterdam, uma brasileira foi morar ali por perto e precisava se deslocar do bairro dela até o centro da cidadezinha. Mas aos 60 anos nunca havia andado de bicicleta. Uma amiga se dispôs a ajudá-la a desvendar os segredos do equilíbrio com impulsão. Aquilo virou atração, já que as pessoas não concebiam que algum adulto não soubesse andar de bicicleta. Supunha-se que já se nascia sabendo. Sei que, no dia em que finalmente a amiga a soltou e ela saiu pedalando, de uma construção próxima vieram estrepitosos aplausos e vivas!
Da mesma maneira como lamento o desaparecimento dos trens, lamento a hoje inviável convivência de carros e bicicletas. Aqui, por supuesto. Porque em Amsterdam... ai! (suspiros de inveja)