segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

‘Best sellers’, nem sempre ‘best reading’


Tela de Daniel Garber

A lista dos mais vendidos tem de tudo. Mas quase nunca a maior parcela deles é a dos livros de melhor leitura.
A primeira razão para um livro vender muito, ao que parece, diz respeito a quem o escreve. O nome do autor pesa, quando ele é popular, famoso ou polêmico. Não é tudo – nesse campo, nada é definitivo e há sempre espaço para surpresas. Mas há uma tendência clara a vender mais quando na capa se lê um nome conhecido e bem divulgado nas mídias, seja lá por que for. Isso explica a preferência dos editores em geral por tais nomes. Dependendo da linha editorial, privilegia-se a popularidade ou a competência, contanto que reconhecida. Editoras sérias escolhem nomes de status nos meios literários, embora tenham em comum com as outras o interesse de mercado – o que não é de estranhar, já que se trata de empresas comerciais que, como é óbvio, vivem do lucro.
Mas além do autor, há outros fatores que favorecem a venda. Livro não é artigo de primeira necessidade, e no Brasil talvez nem de segunda ou terceira. Num mercado meio bisonho, mesmo as características que podem tornar um livro atraente nem sempre funcionam. Sem falar dos didáticos e utilitários, dicionários e guias de uma coisa ou outra, os leitores variam. Há meninas loucas por obras tipo Gossip Girls; há gente fissurada em romances novelescos e/ou pornográficos; há rapazes ligados em esportes, preparação física e afins; há um público cada vez mais numeroso interessado em culinária, vinhos e coisas do gênero. Policiais bem falados costumam pegar, assim como as biografias de gente famosa – o interesse pela vida alheia não costuma falhar – e os chamados livros de fantasia, em que Harry Potter se mantém campeão. No universo dos livros infantis, o mercado anda meio florido, mas nem todos conseguem vender tanto quanto imaginavam.
Como todo mundo sabe, livros de autoajuda costumam bombar. Para seus autores, uma bênção dupla: depois de se firmarem entre o público específico, bem numeroso em termos relativos, eles podem arriscar obras menos típicas, já que seus nomes conseguiram alguma notoriedade e conquistaram preferências dentro dessa faixa de leitores – podendo também motivar parte de um público movido por curiosidade ou desinformação. Há quem entre numa livraria à procura de um presente e peça informações ao vendedor ou escolha o título da pilha mais em evidência. Mas o público que consome livros de autoajuda quase sempre – mesmo sem ter consciência disso – procura respostas para suas dúvidas existenciais, fórmulas que os ajudem a viver melhor ou até soluções mais focadas em uma dada situação. E como as psicoterapias ainda saem bem mais caras, por que não procurar se ajudar por esse meio? Dependendo do caso, pode até funcionar, menos ou mais precariamente, enfim.
O que menos parece mover o leitor brasileiro é o prazer de ler propriamente dito – ler pelo prazer da leitura em si. Por aí se explica a repercussão restrita da literatura de ficção ou de poesia de qualidade. A leitura pela leitura parece não ter sido ainda descoberta por grande parte dos brasileiros. Nesse particular, existem guetos que nem o poder aquisitivo nem o nível de escolaridade podem explicar. É questão de gosto, conhecimento do assunto, adquirido por contatos pessoais, formação escolar ou sensibilidade e criatividade inatas. Sem elitismo nem pretensão de situar o leitor bem formado num nível superior a quem quer que seja, é preciso frisar essa realidade. Não porque ela acrescente valor ou importância a quem aprecia e sabe escolher um bom texto, mas porque sua falta limita as possibilidades de satisfação genuína de muita gente, cuja vida certamente se beneficiaria mais da leitura de boa qualidade literária do que de livros de autoajuda e afins.
Há muito a dizer sobre literatura. Há muito a divulgar, incentivar e praticar entre nós. Faltam informação e orientação ao leitor em geral, para que ele possa perceber tudo que um livro de qualidade literária apreciável poderia lhe oferecer em termos de enriquecimento pessoal – mesmo para a vida prática – e cultural. O quanto um livro de qualidade contribui para melhorar quem o lê com olhos de ver e palavras bem aproveitadas. O quanto esse tipo de leitura significa para a autoestima e a capacidade de entender a si mesmo, fruir a vida, os sentimentos, o relacionamento entre parceiros e amigos. Quem lê mais enriquece seu interior, sua personalidade, torna-se uma pessoa mais lúcida no meio deste mundo louco. Não é pouca coisa. Viver melhor é acima de tudo uma questão de ver mais longe e entender melhor as pessoas e o que acontece a nossa volta. E para conseguir isso a boa literatura é imbatível.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

SENHORA DO TEMPO. COSTUREIRAS E ARMARINHOS

Por Vera Guimarães

Lana Lobell Catalog - Summer 1964
Catálogo de Verão 1964
Imagem: Flickr
Instigada pela amiga Fal, comecei a pensar no assunto: como nos vestíamos em 1940, 1950, 1960?

No interior de Minas, onde eu vivi até meus 18 anos, completados em 1960, não existia roupa pronta para comprar. Nossas roupas eram feitas sob medida, por alguém de casa ou por costureiras, moças e senhoras habilidosas que viviam de transformar tecidos e linhas em nossos sonhos e desejos.  No meu caso, minha irmã mais velha, que já se foi deste mundo, era costureira profissional e também fazia nossas roupas, até ela se casar.

No geral, as costureiras faziam todo tipo de vestimenta, mas algumas se dedicavam a alguma especialidade: havia as que faziam roupa de festa, havia as camiseiras, as que faziam calças compridas (slacks), as que faziam roupa de cama...

Até nossas calcinhas e soutiens eram feitos por costureiras. Os soutiens eram feitos de algodão firme, pespontados para ficarem ainda mais firmes, acolchoados com algum material próprio e quase tão pontudos como os do Jean-Paul Gaultier consagrados por Madonna. As calcinhas eram abotoadas de lado, obrigando-nos a uma ginástica para entrar nelas e delas sair. Éramos jovens e flexíveis.

As modistas, outro nome para costureiras, geralmente trabalhavam em suas próprias casas. Nossa irmã costurava num cômodo separado da casa, um barracão ensolarado, de onde soava a cadência da velha máquina de costura PFAFF e de onde saía seu alegre cantar. Sempre achei uma delicia chegar a um desses lugares, cheios de cortes de tecidos, caixas de aviamentos, linhas coloridas, fitas métricas, moldes, vestidos alinhavados em manequins, fiapos pelo chão, e principalmente os figurinos, ah, os figurinos! Meus preferidos eram os Lana Lobell, americanos, que exibiam moças esguias, em vestidos rodadíssimos e cheios de graça, que tentávamos imitar.

Alceu Penna
Foto: Blog Zaz
Além dos figurinos, nossas fontes de inspiração ou cópia eram o cinema e a revista O CRUZEIRO, onde reinava soberano o imortal Alceu Penna, cujas garotas, encanto dos encantos, eram meu ideal de aparência e, principalmente, de atitude perante a vida: esportivas, bem humoradas, soltas, enturmadas, articuladas, tudo o que eu sonhava para mim.

Escolhido o modelo e o tecido adequado ao modelo, definida a metragem , a tarefa agora era ir às compras. Havia muitas, mas muitas mesmo, lojas de tecidos. Minha mãe tinha suas preferidas, fosse pela variedade, simpatia das vendedoras, preço bom, facilidade de pagamento. Eu adorava acompanhá-la nessas expedições de caça ao tesouro. Se a ocasião - uma formatura, um casamento - exigisse algo mais sofisticado, até se considerava a hipótese de uma ida a Belo Horizonte, onde nos maravilhávamos com o tamanho e o estoque da Casa da Sogra ou da Copacabana Tecidos. 

Comprar tecidos nos introduzia num mundo de vocabulário precioso: cetim, cetim de algodão, gorgurão, fustão, tricoline, tafetá, organza, organdi, laise, seda-pura, veludo, shantung, changeant, chiffon, mousseline, crêpe, cambraia, renda valenciana, renda marescot, renda guipure...

Definir com exatidão o que queríamos implicava o uso de um jargão e falávamos com propriedade sobre blusado, enviesado, nesga, manga japonesa, manga fofa, manga ¾, redingote, godet, evasé, plissé, chemisier, palavras que, ademais, nos familiarizavam com a língua francesa.

A confecção das roupas demandava no mínimo duas idas à costureira: tirar medidas e fazer a prova. Dependendo do grau de detalhismo da freguesa ou da profissional, essas provas viravam duas ou três. Finalmente, a emoção de sair da costureira carregando a preciosa carga envolvida em papel de embrulho – lembro-me direitinho dos tons de rosa, verde, amarelo ou azul desses papéis -, fechada nas laterais com alfinetes, por supuesto.

Lá pelo fim da década 1950, começaram a chegar à cidade as lojas de roupas prontas, as confecções, onde comprávamos principalmente roupas de malha, lingerie, as meias e os agasalhos para a escola. Nada muito sofisticado.

Mas, ah, sofisticado, comprado pronto e certamente importado foi o que uma de minhas irmãs ganhou dos patrões, num natal: um conjuntinho de ban-lon, malha macia como eu nunca havia tocado, num amarelinho pastel encantador, aquela coisa mais linda que só se via nas revistas e nem ao menos se podia copiar.  

Deve ter sido por aí que começou o domínio das confecções, que investiam no que não podia ser copiado, ao mesmo tempo em que valorizavam suas marcas, suas logomarcas, e assim deslocavam das salas das modistas para as novas lojas o objeto do nosso desejo.

Sei que aos poucos fomos abandonando as costureiras. Guardo delas, e de tudo que cercava seu ofício, lembranças carinhosas.  

Ah, os armarinhos do título? Ficam para uma próxima conversa.






sábado, 26 de fevereiro de 2011

A MAIS INCRÍVEL VIAGEM!

Por Alline Storni


Quando fui convidada a escrever aqui a idéia (eu não respeito a nova gramática, então meu idéia tem acento, tem i, enfim...) era falar sobre a vida no exterior e as minhas viagens pelo mundo... As curiosidades, a minha percepção de tudo.

Pois hoje eu vou falar da mais louca das viagens. Ainda é uma viagem em andamento, porque ainda não chegou ao fim e, sinceramente, acho que nunca chegará!

A viagem é um tanto quanto assustadora para mim... Mas muito, muito prazerosa.

A viagem de duas vidas. Uma dentro da outra. E por mais que eu seja bióloga de formação e saiba e creia que “é assim mesmo que a natureza faz” e “é pra isso que estamos aqui”, essa idéia de gerar uma vida ainda me surpreende.

É muito louco, pensem comigo, gerar uma vida. Que depende do que você come, bebe, dorme (além, é claro, de todos os outros fatores que não podemos controlar) pra crescer.

E é engraçado e também surpreendente como uma pessoa que ainda nem vi pode já fazer parte da minha vida. Porque a partir do quarto - quinto mês, a bebezinha começou a se mexer muito (o que nos levou a apelidá-la de Pipoca). E com o passar do tempo eu comecei a entender e a aprender o que provoca os movimentos, quando ela fica mais ativa, quando ela dorme... A partir de então foi mais fácil acreditar que tem realmente alguém dentro da minha barriga!

Estar grávida fora do país envolve também uma busca por aprendizado a respeito não só da gravidez em si, mas também a respeito dos mitos e superstições que envolvem a maternidade. Aqui na Itália a gravidez não é tão festejada ou proclamada quanto no Brasil, pelo menos aos meus olhos. Parece tudo muito “normal”... Nenhum desconhecido pede para passar a mão na tua barriga, por exemplo. Ninguém pergunta muita coisa sobre a gravidez ou sobre o bebê, a não ser que seja um amigo ou alguém da família. Não existe chá de bebê. As pessoas dão presentes, na maioria das vezes, só depois que o neném nasce, porque algumas acreditam que pode dar azar entregar um presente antes. Não existe a tradição de preparar o quarto do bebê, toda aquela loucura que nós brasileiros somos acostumados. O quartinho normalmente é muito simples, berço, trocador, cômoda e pronto... E na maioria das vezes, é feito quando o bebê é já maiorzinho. No início, ele fica no quarto dos pais, numa “cula”, que é tipo um Moisés.

A tendência aqui é parto natural, como na maioria dos países da Europa. Alguns hospitais são radicais e não oferecerem nem a anestesia epidural. Então a escolha do hospital tem que ser feita com calma, procurando saber tudo direitinho para evitar surpresas desagradáveis no momento crucial!

O médico ginecologista não te acompanha na hora do parto, na maioria dos casos. A não ser que você pague por isso. Normalmente como o serviço sanitário é todo de graça, o médico que estará de plantão na hora que você for parir que vai te assistir e pronto.

Mais importante que o médico são as obstetras. São profissionais de saúde com formação específica para fazer o parto, são parteiras com diploma por assim dizer. São elas (digo no feminino porque ainda não vi nenhum obstetra homem) que fazem o parto no hospital, os médicos estão ali só pro caso de dar algum problema.

O serviço sanitário é totalmente grátis se você for legal aqui e tiver direito. Exames, ultrassonografias, hospital, parto, tudo. Soube de uma amiga brasileira que por aí custa uma pequena fortuna parir sem um plano de saúde...

A Pipoquinha aqui parece que já está pronta para sair. Já está na posição correta e tem me dado chutes muito vigorosos. Acho que ela já reconhece a voz do pai, porque quando ele chega do trabalho ela já começa a se mexer. Ela tem muitos soluços, é engraçado isso... Normalmente depois que eu como frutas cítricas ela começa a soluçar. São movimentos ritmados, parece batida de coração.

Graças à tecnologia que temos nas mãos, a viagem fica ainda mais interessante. Eu já sei, por exemplo, que a Pipoca tem nariz de batata igual ao meu porque vi na ultrassonografia em 3D! Sei que é já bochechudinha...

Eu não canso de dizer, de todas as viagens que fiz essa realmente é a mais incrível e louca de todas!

E que a Pipoca chegue com saúde, que venha me mostrar que esse é só um começo de uma longa e maravilhosa viagem. Que é uma história sem fim!

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

"O JAZZ" DO SERTÃO. ReCApiTULLandO a PAIXÃO

Por Ana Laura Diniz

Oh, que saudade do luar da minha terra
Lá na serra, branquejando 
folhas secas pelo chão
Este luar cá da cidade tão escuro
Não tem aquela saudade do luar lá do sertão...

Desde o dia em que soube que a Sonja, uma amiga querida que mora há anos em Londres, compartilha do mesmo gostar em relação ao Catullo da Paixão Cearense, penso nela quando o escuto.

Ontem não foi diferente. A noite fria, incomum até então no verão, e estrelada, levou-me numa melodia assoviada a essa lembrança.

Ainda menino, o filho do ourives Amâncio José da Paixão Cearense e de Maria Celestina Braga deixou a cidade de La Ravardière, no Maranhão, e partiu com a família rumo ao sertão cearense para a fazenda dos avós paternos. 

Ao contrário do que possam imaginar, a seca jamais existiu: bebeu sabedoria de gente simples, embrenhou-se entre os matutos e abraçou a viola como eterna companheira.

Se a lua nasce por detrás da verde mata, 
mais parece um sol de prata
prateando a solidão
e a gente pega na viola que ponteia,
e a canção é a lua cheia
a nos nascer do coração...



Além de violonista, foi flautista, letrista, cantor e poeta. Sua primeira modinha “Ao Luar” (1880) deu margem a muitas outras como “Talento e Formosura” (1906) e “Caboca de Caxangá” (1913). 

Poucos retrataram tão bem a face do boêmio apaixonado.

Aos 17 anos, Catullo deixou o Ceará e mudou com a família para o Rio de Janeiro. Nada mais o afastou da música. Nem fatos políticos como a Proclamação da República e as crises políticas dos presidentes Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto por ele vivenciados.

Em 05 de julho de 1908, ele firma definitivamente os passos para a história da música brasileira ao levar o violão das rodas de seresteiros para os conservatórios eruditos de música, a convite do maestro Alberto Nepomuceno. Resultado: passou a ser respeitado pela crítica e merecidamente ovacionado pelo público.

Não há oh! gente oh! não 
luar como esse do sertão...



Seu auge foi na Rádio Nacional do Rio de Janeiro com “Luar do Sertão” (1910), que chegou a inspirar escritores como Lima Barreto – que tirou as vestes de Catullo para cobrir o personagem Ricardo Coração dos Outros, um violonista compositor de modinhas, coadjuvante do clássico pré-modernista “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, obra que ressalta e denuncia os causos políticos e históricos ocorridos justamente durante à fase de instalação da República, mais precisamente no duro governo de Floriano Peixoto (1891-1894).



É, mas o que suscita luxo atrelado à fama, engana. A ida ao Rio foi também tingida pelo falecimento da mãe, e três anos depois, o do pai. Sem opção, durante o dia o boêmio trabalhava no cais como estivador, e às noites, quando dava tempo, reservava-as às canções.


Coisa mais bela 
neste mundo não existe
do que ouvir um galo triste
no sertão se faz luar
parece até que a alma da lua que descansa
escondida na garganta 
desse galo a soluçar...



Mas como mesmo o que é bom um dia acaba, no dia 10 de maio de 1946 Catullo veio a falecer. Como muitos que foram grandes, morreu à míngua: sua única renda, provinda dos direitos autorais, foram vendidos por merreca para um amigo. Terminou a vida em uma modesta casa de madeira no subúrbio carioca de Engenho de Dentro, com a poesia e a viola debaixo do braço.

Ai quem me dera que eu morresse lá na serra
abraçado à minha terra
e dormindo de uma vez
Ser enterrado numa grota pequenina
onde à tarde, a Sururina 
chora a sua viuvez...



Mas como sempre, parte o artista, jamais a sua obra. Nomes como o de Vicente Celestino, Paulo Tapajós, Orlando Silva, Carlos José, Luiz Gonzaga e Milton Nascimento bem representaram Catullo. As últimas regravações feitas primorosamente nos quesitos – interpretação, harmonia e arranjo – foram de Marisa Monte, em “Ontem ao Luar” (no original de Pedro de Alcântara, parceiro de Catullo, chamava-se “Choro e Poesia”), no compacto simples “Marisa Monte”, de 2001; e Maria Bethânia, que interpretou “Luar do Sertão”, em seus álbuns “A força que nunca seca”, de 1999, e “Brasileirinho ao vivo”, de 2004.

Quanto a Bethânia, saibam, devem sempre suspeitar de meus escritos porque não poupo adjetivos: sou fã fervorosa dessa mulher, de quem, certamente, falarei um dia, bem mais adiante.

Hoje fico com Catullo. E a Paixão que nunca morre.

Discografia

- Catullo da Paixão Cearense nas vozes de Vicente Celestino e Paulo Tapajós (relançado em CD, 1994);
- Catullo – O poeta do sertão (1958, vinil);
- Catullo – Intérprete: Tenor Vicente Celestino (1955, vinil);
- História da música popular brasileira, vol. 38 – Catullo da Paixão e Cândido das Neves;
- Luar do Sertão – Paulo Tapajós com orquestra e coro interpreta Catullo da Paixão Cearense (vinil).


Marisa Monte em "Ontem ao Luar"


Maria Bethânia em "Luar do Sertão"

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

CORRESPONDÊNCIA URBANA. A CIDADE EM CONSTRUÇÃO

Querida Ana Paula,

China Moderna: projeto
urbano inspirado
no "Sim City"
Vi recentemente um documentário sobre Juscelino, Niemeyer e a Pampulha. Fiquei sabendo que a Pampulha foi a primeira obra arquitetônica dele, que sempre privilegiou as curvas - sei lá se baseado no contorno do corpo feminino ou na curvatura do planeta.

O documentário falava sobre a alteração que Juscelino provocou em nossos corações e mentes ao ousar propostas de cultura - seja antiga ou moderna - assim, ampliando o conhecimento do povo em geral.

Estou ditando essa carta para Ana Laura (pois permaneço com três cervicais achatadas), sentada numa cadeira de traços retilíneos baseada no banco caipira mineiro feita pelo Carlos Simas, que é de um conforto atroz. Reporto-me a essa cadeira porque penso se as cidades não deveriam nos oferecer tal comodidade e prazer como ela me oferece. No entanto, vemos poluição, engarrafamentos, sujeiras, odores desagradáveis, etc.

Minha amiga, o que seria para você a cidade ideal? Como deveria ser desenhada?

Beijos, Esther



São Paulo
Ana Paula Medeiros
Professora substituta de História da Cidade e do Urbanismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e doutoranda em Urbanismo, também na FAU-UFRJ, na linha de pesquisa Estrutura, Morfologia e Projeto do Espaço Urbano.

Olha, Esther,

Como esse tema me é muito caro, eu vou usar um subterfúgio meio desleal pra agilizar a resposta: vou recorrer a um dos meus primeiros posts, lá no Urbanamente, em que eu tratei disso, e retomá-lo com algumas intervenções. Aliás, até hoje, é a questão que mais leva gente ao blog. O conceito de cidade em si, e de cidade ideal. 

Vou começar dizendo, meio teimosamente, que tenho grande implicância com a expressão "cidade ideal". Não a uso. Acho mesmo que não creio nela. Mas sinto falta da discussão e das propostas que animaram tantas buscas por este ideal. Pra me explicar, vou ter que voltar lá atrás um tiquinho, posso? Se você achar que ficou muito comprido, pode desmembrar, como achar melhor.

Londres
No princípio, era a barbárie. A selva, a lei do mais forte, o comer o que tinha, o dormir onde dava, o ser sem saber que era. Depois vieram a consciência, a reflexão, o trabalho, o querer mais, o querer melhor, o querer diferente, a civilização, a história. A cidade. Ao preço de reprimir os instintos, criar a lei, identificar o certo, punir o errado, sublimar desejos. Ao preço de se tornar homem. Segundo Freud, ao preço de um tremendo e eterno mal-estar, que ao mesmo tempo nos incomoda, nos confronta com sombras e heranças escondidas, e nos impulsiona, nos possibilita o convívio e a experiência urbana, nos põe em movimento.
Nova Iorque

A cidade é, assim, o lugar que resultou desse salto, o habitat do homo urbes. A cidade – e tudo o que ela significa, em cada uma de suas faces – é o lugar, por excelência, onde se manifestam e resolvem os conflitos, se criam e dissolvem as tensões, onde se encontra e se desencontra todo tipo de gente, de jeito e de atuação. É o lugar da diferença, e por conseguinte, da negociação constante, muda ou deflagrada, cordial ou belicosa.

O bárbaro ainda está aí, à espreita, e quanto mais esgarçados os laços que nos fizeram urbanos, que nos fizeram cidade; quanto mais fragmentados nossos vínculos de urbanidade e solidariedade, mais frágeis nos tornamos, mais vulneráveis ao retorno à selva, à violência. Por baixo da pele de cidadãos, ainda habita um homem cheio de potência e contradição.
Roma

A questão é que não há e nem haverá mais inocência. Mesmo o selvagem que
 irrompe aqui e ali tem alguma reflexão sobre seus atos, alguma idéia, por absurda ou desprezível que possa parecer a outrem. Há valores em jogo, todo o tempo. Vários, distintos. Valores irrefletidos e repetidos em coro, decalcados de representações alheias. E valores bem pensados, frutos de uma lucidez aguda e pungente, ou pelo menos de uma busca genuína dessa auto-avaliação. Mas desde que se fundou a primeira cidade da história, se fundou também a ideia e a prática do palco. Somos atores e platéia, críticos, diretores, produtores, figurinistas, bilheteiros, lanterninhas, de um grande e ininterrupto espetáculo coletivo. Olhamos e somos olhados. A cidade é um conjunto das representações que fazemos dela. E nela. É um mosaico em movimento, um caleidoscópio.
China

A cidade é um lugar de encontro. É pública (em que pesem os empreendimentos que vendem cada vez mais a ilusão de uma cidade "privada", onde tudo funciona lindamente e você pode morar com segurança, comodidade, bem-estar imorredouros).

A cidade é um lugar de múltiplas funções. Há uma dimensão física na condição humana, a necessidade da sobrevivência, do abrigo, da comida, da vestimenta, ainda que mesmo esta dimensão já esteja irremediavelmente associada aos valores culturais e estéticos de que lhe impregnamos e com os quais lhe vivemos a experiência. Há a arte, o desejo, o prazer, o imponderável, que remete à dimensão espiritual e transcendente da vida, alimento igualmente fundamental à sobrevivência e à experiência urbana. Há vários tempos na cidade, camadas, reinvenções, reconstruções, sedimentos, fissuras, o ontem, o hoje, a memória, a tecnologia, tudo junto misturado agora. Há vida impregnada nos pequenos objetos de todos os dias, no afeto emprestado aos artefatos.
Amsterdã

É um lugar de diversidade, com "tribos" diferentes, frequentando e produzindo
 continuamente seus espaços, e, sobretudo, colaborando para que a cidade exista. Gente de tipos variados, jovens e velhos, mais conservadores ou mais descolados, classes sociais diferentes, ideologias, gostos, opiniões, experiências, limitações e contribuições. 

É um lugar onde pulsa o movimento. Onde há fluxos, de informação, de gente, de bens. Onde há produção, consumo, criação. Num mesmo espaço físico, a cada dia transitam vidas diferentes, que configuram paisagens diferentes. E mesmo os espaços físicos muda. Acompanha uma moda, uma necessidade de reciclagem, de manutenção. Tudo fala de efemeridade, de transitoriedade. De movimento.

Cidade para mim, é isto. Uma rede de interações e representações, que pulsa, que se transforma o tempo inteiro. Cidade é processo. É evidente que, a esta altura, assumo a noção de que cada cidade são várias e que, para cada um de nós, cada imagem da cidade é mediada por suas experiências, sonhos, expectativas, desejos e frustrações.

Aqui entra a minha dificuldade com o conceito de cidade ideal. 
Mikonos (Grécia)

É que, historicamente, esse conceito sempre esteve associado a algo estático. A um estado a que se almeja chegar, e no qual, quando alcançado, todos os problemas estarão resolvidos. Idealizamos, fantasiamos, projetamos, isso não é ruim, pelo contrário. Se serve de motor, é ótimo. Se serve de meta, de destino final, aí está o problema. Idealizamos o passado, nossa memória é uma narrativa para sempre ficcional, subjetiva. Idealizamos a cidade, talvez desde sempre. Os poetas gregos já cantavam suas cidades, as virtudes de seus cidadãos, a glória de suas conquistas. E de longe parece tudo tão mais lindo, os dias são ensolarados, as águas são azuis, os jardins são floridos, as casas são amplas, os heróis são virtuosos. De perto, há barulho, sujeira nas calçadas, a chuva faz transbordar os bueiros, os ônibus buzinam e param em fila dupla, meninos pedem esmola nos sinais e cheiram cola sob a marquise.

Sonhar uma cidade melhor (eu disse melhor, não disse perfeita) é importante, sim. Mas não pode obliterar nossa visão, nos impedir de enxergar as mazelas de todo dia. Nem deve nos fazer desistir.

Foi ali pelo Renascimento que surgiu com força essa coisa de pensar e propor a Cidade Ideal. Quantidades de arquitetos escreveram tratados e propuseram planos, descrevendo como seria essa cidade. Como a onda era o racionalismo, o humanismo e tal, esses desenhos de cidades eram quase sempre figuras geométricas regulares: cidades circulares, octogonais, em forma de estrela, quando muito quadradas. Sempre figuras que se podia inscrever no círculo, a mais perfeita das formas. O eixo principal dessa perfeição e idealização da cidade era a estética. A cidade ideal devia ser bela. Ninguém ainda se preocupava com os aspectos sociais ou funcionais da cidade. Isso só veio com a Revolução Industrial e suas mazelas.
O renascimento surge com a utilidade do
octógono, não só de um ponto de vista
 simbólico mas também construtivo.
É de base octogonal a cúpula de Santa
Maria del Fiore em Florença,
obra-prima do Brunelleschi.
Só que ficou, pra nós, uma expectativa meio mecânica de que uma cidade bem planejada é uma cidade sem problemas, que funcionaria como um relojinho, cada coisa no seu lugar. Como se a cidade fosse um objeto inerte que, uma vez organizado, limpo e “consertado”, assim permaneceria. E mais, ficou uma certa impressão de que cabe ao Estado elaborar, executar e fiscalizar um plano de intervenção que acabaria com os problemas da cidade. Nós estamos no século XXI, lidamos com realidades virtuais, desterritorialização do trabalho e da economia, multiplicidade das possibilidades de comunicação e relacionamento, mas ainda pensamos a cidade bem parecidinho com o que faziam os caras lááááá no século XVI ou XVII.

No livro “O que é cidade” (Coleção Primeiros Passos, Editora Brasiliense), Raquel Rolnik lista quatro temas recorrentes das idealizações renascentistas que ainda permeiam nossas concepções de cidade:

1) A tendência a fazermos uma leitura mecânica da cidade, como se ela se reduzisse a uma circulação de fluxos – de pedestres, de veículos, de cargas, de dinheiro, de ventos ou águas;

2) A ideia de ordenação matemática (regularidade, repetição) como base da racionalização na produção do espaço;

3) A suposição de que uma cidade planejada é uma cidade sem males (muita gente boa no planejamento urbano, lá no fundo, ainda trabalha com essa hipótese)

4) A crença na capacidade do Estado de controlar a cidade, através das normas, da legislação, da fiscalização e, em última instância, da polícia.
Eu só tenho uma coisa a dizer: esquece. Essa cidade dócil e arrumada não existe, nunca existiu e não existirá (amém). A gente precisa, cada vez com mais urgência, pensar a cidade como processo, como algo em constante mutação e construção, e principalmente como uma construção coletiva, o que significa que é muito provável que os rumos tomados a cada instante não sejam sempre aqueles que euzinha desejaria ou consideraria melhores. A cidade não pertence ao Estado, ela pertence a todos nós e especialmente a quem dela participa (vocês já pararam pra pensar na proximidade semântica das palavras POLIS – que designa as cidades-estado gregas e POLÍTICA?). Aos que se omitem, restam a reclamação vazia, o nariz torcido e a desesperança.
Françoise Choay

Há uma autora ótima que trabalha muito com esse tema, chama-se Françoise Choay. Há dois livros em especial, em que ela se debruça sobre essa questão, da elaboração histórica das propostas sobre cidades ideais. Um deles se chama O Urbanismo, e nele ela examina especialmente os pensadores dos séculos XVIII e XIX e suas crenças sobre as causas dos problemas das cidades, bem como as soluções que eles apresentavam. O outro livro, mais erudito um pouco, mas fantástico, chama-se A Regra e o Modelo, e nele Choay desenvolve o tema da cidade ideal a partir da pesquisa sobre os tratadistas do Renascimento, começando com Leon Batista Alberti e sua releitura do tratado de Vitruvius, do século I d.C., e seguindo por muitos outros, da Itália, da França e da Inglaterra, que perseguem essa miragem, com destaque para a Utopia de Thomas Morus. 

Eu digo miragem mas longe de mim retirar o valor fantástico dessas proposições, que hoje, em nosso mundo tão pragmático, nos fazem imensa falta. Podemos falar mais disso depois, a importância de voar no sonho da cidade, para poder construí-la no aqui e agora com realidade, mas também com poesia.

Beijos,
Ana Paula