segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Todos por um





Dade Amorim






Num tempo em que pensar parece coisa fora de moda, porque já existem modelos prontinhos pra ser usados, e as escolhas estão cada vez mais limitadas às ofertas consagradas pelo mercado, gostar de alguma coisa tornou-se meio que uma convenção. Sair dos padrões em uso é motivo de estranheza e má vontade por parte de certa massa de gente pré-fabricada, de cabeça feita pra encher os bolsos de uma indústria de espetáculos acelerados e barulhentos, que se dedica a impedir que seus consumidores possam pensar alguma coisa enquanto se agitam sem trégua. Essa educação pelo barulho liquida a capacidade de refletir e a liberdade de escolher o que realmente agrada a cada um. Barulho e agito demais prejudicam não só a audição como também criam calos na sensibilidade.

Por conta disso, boa parte de nossa gente perde a oportunidade de conhecer autores que nos enriquecem pela leitura, nos ajudam a desenvolver o senso crítico, estender o vocabulário e perceber certos mecanismos de nossa língua na sutileza de um bom texto.

Na segunda aula da Oficina do Conto, no Portal Literal, José Castello fala dos contos de Machado para mostrar como a narrativa curta pode ir muito além da história narrada e traduzir idéias.

No conto O espelho, por exemplo, o autor expõe um ponto de vista segundo o qual as pessoas têm na verdade duas almas – uma interna, que olha o mundo de dentro para fora, e outra externa, que se vê de acordo com os olhos do mundo a sua volta. Em nosso caso – “Um mundo em que as pessoas costumam ser reduzidas a títulos, a contas correntes, a imagens na mídia, a currículos, a crachás. A ‘alma exterior’ dá as cartas num mundo que se define pela superfície e pela velocidade e que tem horror à profundidade e à lentidão –” pode-se perceber o quanto o velho Machado é atual ainda hoje. E necessário.

É na capacidade de ser atual, mesmo fora de seu tempo, que reside uma das características do bom escritor, chame-se ele Machado, Poe ou Mia Couto.


domingo, 30 de dezembro de 2012

SENHORA DO TEMPO - "E SE..."

Vera Guimarães
 
Marido anda maravilhado com maciços de árvores de grande porte cobertas de ouro amarelo que, neste dezembro, se exibem por muitas vias de Brasília. Ao admirá-las mais uma vez, agora ali perto do Corpo de Bombeiros da Esplanada, esclareci: Canafístula! 


Por que preciso dar nomes às coisas, principalmente às da natureza ? Por que gosto de saber quem é quem? Por que não me basta o encanto do canto do passarinho, por que tenho necessidade de saber que é uma garrincha?  Apesar de não dar a mínima para horóscopo, já ouvi dizer que taurinos são chegados a uma classificação, a ordenamentos, categorizações. Sou taurina e sou assim.


Acho que esse interesse por nomear as coisas me veio nas muitas andanças com minha mãe, quando ela naturalmente ia dizendo o nome de uma planta, de uma raiz, de um animal, de uma pessoa, de um lugar...

Quando terminei o hoje denominado ensino médio e quis me encaminhar para Letras, tive que fazer o que se chamava adaptação, uma espécie de nivelamento ao então Científico (ou Clássico), já que eu havia feito o curso técnico de Contabilidade. As matérias que escolhi foram Latim (muito coerente com o que eu pretendia) e Biologia. Biologia? Por quê? Acho que me agradava exatamente o ordenamento, as classificações, a taxonomia.

Ainda hoje me pergunto por que não fui estudar Biologia. E se...? Essa bobagem de ficarmos pensando na vida que não vivemos teima em nos assaltar de vez em quando, principalmente quando estamos deprimidas, insatisfeitas com algo, nostálgicas. Recentemente, escutei de uma amiga, das pessoas mais admiráveis que já encontrei, pessoa que vive de forma arrojada, que enfrenta o senso comum, pessoa que faz história por suas ações, que faz diferença na vida de muita gente, que se lança em empreendimentos que lhe consomem o tempo, a saúde e a sanidade, pessoa que se dedica a atividades variadas,  desde criação de cavalos de raça até canto erudito, pois bem, ouvi dela que às vezes acha que deveria ter feito tudo diferente. Ora, Esther, faça-me o favor!
 

Deixe isso para pessoas fracas ou para a literatura e as artes. Uma de minhas autoras preferidas, a Lionel Shriver, escreveu um livro sensacional explorando exatamente esse “ E se...?”  Em O Mundo Pós-Aniversário ela nos conduz pela vida dos protagonistas, ora na perspectiva do que aconteceu a partir de determinada decisão, ora na perspectiva do que aconteceria se a decisão tivesse sido outra. Possibilidades infinitas e fascinantes! E a gente torcendo para que o caminho tivesse sido esse ou aquele.
 
No cinema também tem disso. Corra, Lola, Corra! é feito de cenas que repetem determinado fato e a cada repetição se avança mais um pouco no tempo, quando os fatos se alteram  e mudam a história, num ritmo  aflitivo, desastroso, tenso, com um desfecho muito bem construído.  

Outro filme nessa mesma linha é De Caso com o Acaso, relatos paralelos da vida da protagonista, um na hipótese de ela ter conseguido entrar no vagão que fechava a porta, outro na hipótese de ela ter perdido a viagem.
 

Por que mesmo estou falando de livros e filmes? Ah, por causa do tormentoso “E se...?” Então, e se eu tivesse feito Biologia? Talvez não gostasse tanto de descobrir o nome das coisas, como de fato gosto.


Fontes:

Fig. 1 - Canafístula
Fig. 2 – Garrincha
Fig. 3 – O Mundo Pós-Aniversário
Fig. 4 – De Caso com o Acaso

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Rio, cidade ambígua

                                 
Imagem sem nome de autor.


O Rio tem um quê de inesperado. Aqui acontecem coisas difíceis de encontrar em outras cidades do mundo. Até mesmo coisas desabonadoras acontecem por aqui com certa naturalidade. São traços de personalidade que os cariocas e seus amigos de fora vão absorvendo, à medida que se acostumam às ruas, bairros urbanos ou da periferia. São cenas típicas, sentimentos que se instalam na gente que vive aqui; paisagens que incorporamos ao dia-a-dia; costumes que se adotam sem saber bem por quê. Nada mais característico do Rio do que essa sensação de gratuidade, esse contágio fácil que vai generalizando um jeito de viver e agir; que inventa hábitos, expressões, gírias que acabam incorporadas ao carioquês. O jeito de vestir irreverente, a informalidade. A vivacidade, uma espécie de astúcia malandra de procurar o que fica mais simples, mais à mão, o que soa mais despreocupado e casual. A alegria de viver que chega às raias da inconsequência. Um certo atrevimento. E mesmo no inverno, o descaramento de sair sem casaco num frio de dez graus. Ou de casaco e sandália havaiana. Só um carioca pode fazer questão de ignorar o guarda-chuva, faça o tempo que fizer. E as (poucas) cotias do Campo de Santana, ao que parrece, são as únicas no mundo que não fogem das pessoas. Passa-se pela lagoa e lá está uma ave desafiadora na proa de um barco, e a gente para só para ver seu voo se desenhar no meio do céu. O carioca, do mais sofisticado ao mais simples, é um contemplativo.
De repente, um poodle miniatura chama para a briga os pés de quem passa e todos se encantam por ele, enquanto sua dona segue adiante e deixa na calçada os dejetos do bichinho como se não tivesse notado. Ninguém como um carioca sabe se fazer de desentendido, quando lhe interessa. Ninguém desconversa melhor. E ninguém liga pra isso; há uma ética do desinteresse que sustenta a infinita tolerância carioca para com a contravenção, o crime, a bandalha, o relaxamento. O carioca é um leniente que perdeu o freio. 
São cariocas os motoristas machões e marrentos e o poder desassombrado dos pivetes de qualquer idade. Carioca é cheio de saídas criativas. Improvisa, programa só pra não cumprir e não cumpre horários, a não ser que o emprego seja dos bons (aqui é preciso abrir uma exceção para os políticos de assembleias legislativas, que também não cumprem horários nem calendários, embora o emprego seja dos melhores de que sem tem notícia). Carioca pode conviver com o caos e a promiscuidade das ruas, dos bares, das boates sem perder uma ponta de compaixão e uma leveza que recria pessoas e ambientes, mas de repente se invoca (se irrita) por qualquer bobagem e parte para a briga.
É bem a nossa cara virar padrinho de um garoto de rua, ficar inteiramente eufórico por isso e depois perder o afilhado de vista. Acreditar cegamente em alguém só porque tem uma boa conversa. Apaixonar-se de repente por alguém que nunca viu. Fazer amizades instantâneas como se morasse no paraíso.
E no entanto o paraíso carioca é cada vez mais apenas uma linda paisagem. Parece que as virtudes desse povo criaram raízes tão enormes que, com o passar do tempo, viraram um cipoal em que se tropeça a toda hora. Porque uma virtude é o extremo oposto de um defeito, e acontece que os extremos sempre se tocam.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

SEVERO SARDUY. HAVANA, PARIS, BELO HORIZONTE




Lilian Zaremba



Havana.

 Severo Sarduy (imagem Google)
Uma paisagem. Um corte na História.
Homens migram de terras a outras terras como aqueles chamados Tainos quevindos do continente norte, central e sul americano, aportaram e habitaram aquela ilha passando a nomeá-la Caobana. Isso, muito antes da chegada dos espanhóis. Mas quando eles chegaram, renomearam os Tainos e a ilha: passaram a ser Arawak e Cuba...
Uma ilha e muitas histórias. Entre essas, as histórias de pirataria.

Quem visita algumas cidades do Caribe pode observar a beleza de sua arquitetura mas também a estratégia sobre a qual foi pensada...ruas estreitas e sinuosas, construídas de forma a guardar um segredo: do mar , sua vista não alcança longe, dando a idéia – falsa – de que ninguém está protegendo aquele território.
Exatamente assim foi resguardada a cidade de Camagüey.
Durante o século 15, erguida a beira mar, após muitas invasões piratas, foi transferida para longe desses olhos da pilhagem. Camagüey, originalmente Santa Maria de Porto Príncipe, é capital da província e uma das mais populosas cidades cubanas. Além disso, foi ali que ele nasceu.

1937.
ali, aonde outros poetas nasceram: Gertrud Avellanada, Nicolás Guillén... também ele veio ao mundo, Severo Sarduy.

Una lâmpada. Un vaso. Una botella.
Sin más utilidade ni pertinência
que estar ahí, que da a la consciência,
un soporte casual. Mas no la huella.

Uma lâmpada. Um vaso. Uma garrafa.
Sem mais utilidade nem pertinência
Além de estar ali, dando consciência
Um suporte casual. Mas não sua marca.

Poeta, autor deste trecho do “Soneto Morandiano” após estudos escolares, em 1956 sai de Camangüey para estudar medicina em Havana. Quando acontece a Revolução Cubana.

Severo participa nos primeiros momentos da Revolução, colaborando em publicações marxistas como o Diário Libre, mas pouco depois, em 1960, viaja para novos estudos, desta vez em Paris.
Ali, conhece François Whal, filósofo editor da prestigiada Editións du Seuil, que viria a se tornarseu grande amigo e companheiro.
Sarduy trabalha um tempo como produtor na Rádio e Televisão Francesa, escrevendo roteiros, ensaios, aonde se podia escutar

“ouço vozes
não me ordenam nenhum sacrifício,
nenhuma obrigação de meu corpo, de minha pessoa.
Só que não escreva mais para esses vozes”.

Brilhante ensaísta, poeta, pintor, narrador, recebendo o Medici Prize em 1972 por sua novela “Cobra”, Severo Sarduy é considerado uma das  mais importantes vozes artísticas do século 20, uma ponte entre a literatura e pintura, poesia e rádio, Cuba e sim, Belo Horizonte –

Duas imagens de sonho escapam
Cada uma de uma íris

Esta ponte construída através de versos (como os acima, presente no livro Modelos Vivos) captados pelo poeta mineiro Ricardo Aleixo.