segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Sem ilusões

Por Dade Amorim

Graciliano Ramos. Angústia. 13ed. São Paulo: Martins. s.d.

O protagonista narrador de Angústia vive o inferno do convívio sem compaixão, das arestas cortantes, dos sentimentos servidos crus. Um ambiente da mais completa decadência é o cenário desse personagem amesquinhado pela pobreza, sujo, triste, carregando suas dores sem lenitivo.
Julgando-se indigno e menor – sinais de seu recalque – tenta ser invisível quando fora de casa. Procurando evitar que sua presença seja notada ou estorve alguém, encolhe-se a um canto para passar despercebido no bar. Percebe apenas vagamente os movimentos da criada Vitória, avarenta meio trágica, meio louca, quando esta corre ao quintal para esconder suas moedas; admite como amigos duas figuras inexpressivas, cuja companhia não o afeta, porque estar com eles era como não estar com ninguém – invisíveis, portanto.
Apaixonado por uma vizinha que o troca por outro – o personagem opressor e mendaz de Julião Tavares, cujo pequeno poder o afronta – Luís da Silva sufoca na impossibilidade de enfrentar a existência na cidade com sua pobre bagagem de menino do interior. Vive carregado de dívidas, porque seu salário no emprego humilde não lhe rende o bastante. Sua casa é úmida e decadente, povoada de bichos que são como pragas bíblicas. O drama dessa existência arrasta seus sentidos, afetados pelo que acontece com os vizinhos, de cuja vida ele participa através das paredes finas da casa. Impossível dormir em paz, impossível qualquer paz, partilhando os próprios tormentos com os tormentos alheios.
Figura lamentável de um herdeiro arruinado que se deixa assolar por um surdo desejo de revanche contra esse destino, e debilmente partilha dos ideais revolucionários de seu amigo Moisés. Mas nenhuma perspectiva de mudança é mais forte que o dia-a-dia e as lembranças da infância, origem de suas dificuldades e do sofrimento maior, na fazenda decadente do pai preguiçoso e tirânico.
Sua própria aridez interior, sal grosso sobre a pele queimada, assiste e processa a maledicência, a permissividade, os desejos em carne viva e a ausência de toda alegria que dão as cores de Angústia – um título perfeito. O fluxo de consciência costura a trama de personagens sem grandeza. Suas ações e seus tormentos se agravam, vistos pela amargura inclemente do narrador, até o clímax que o texto sinaliza de diversas maneiras.
A preocupação do narrador com as questões linguísticas chama a atenção no contexto do romance. A futilidade de Marina, que se explicaria pela influência de suas leituras, a retórica patriótica e formal de Julião, o sotaque e as dificuldades léxicas de Moisés, a atenção dada às características de discurso que remetem a traços de caráter. A esse respeito, parece visível a influência de Eça de Queirós, em especial em O primo Basílio. O poder denotativo da linguagem se caracteriza nas descrições das roupas e gestos das pessoas, quando menciona as cores, quando fala das condições físicas de seu ambiente. Nada falta e nada sobra, nesse particular. Por outro lado, a linguagem escrita é também objeto de desconfiança e da depreciação que o protagonista projeta na realidade que o cerca, com frases como “Os anúncios não valem nada, papel aguenta tudo”.
Vista por seus olhos, a gente que povoa as páginas do romance e a vida de Luís da Silva dispensa qualquer respeitabilidade e qualquer esperança. Nisso o romance é uma simbolização impiedosa da finita existência humana. Sem ilusões, como é típico do autor de Vidas secas.

domingo, 30 de janeiro de 2011

SENHORA DO TEMPO


Esta seção é sobre a memória de cada um. É o microcosmo resgatado para compor a colcha de retalhos que é a estória do brasil e do mundo,a nossa história.   Senhora do Tempo e Vila..., que voltará em breve, sintetizam a multiplicidade do Primeira Fonte, que a partir do pessoal toca o universal, seguindo o exemplo de Marcel Proust, de "Em  Busca do Tempo Perdido" e  João Guimarães Rosa, das veredas do grande sertão. Ninguém melhor para  iniciar os contares do que Vera Guimarães .
(ALD e ELB)

RUA DA BAHIA

 Por Vera Guimarães



Rua da Bahia em confluência
com a av. Afonso Pena, no início
do século passado.
Na minha juventude, antes da proliferação de faculdades pelo interior dos estados, se quiséssemos continuar a estudar depois do ensino médio, tínhamos que ir para a Capital, no meu caso, para Belo Horizonte. Nos anos 50 e 60, buscar outra vida significava sair de casa e morar em casa de parentes, pensionatos, formar repúblicas, alugar porões. Experimentei todas as modalidades de moradia, estive em ambientes opressivos, lugares divertidos, convivi com gente maluca, conheci pessoas generosas, daquele tempo ainda guardo amizades verdadeiras.


Edifício Acaiaca
Primeiro fiz cursinho no charmoso Champagnat, especializado na preparação para Direito e humanas em geral, que na época funcionava na Timbiras, entre João Pinheiro e Alagoas. Depois fui fazer Letras, na então UMG, primeiro nos altos do Edifício Acaiaca, depois nos altos da rua Carangola. Um tanto por proximidade e conveniência, outro tanto provavelmente por aquilo a que chamam destino, acabei morando em diversos endereços nas imediações da rua da Bahia, nunca a mais de dois quarteirões de sua rive gauche ou de sua rive droite.

Cine Metrópole - Vista do Centro de
Belo Horizonte
De início, morei com uma tia, na rua Goitacases, entre Espírito Santo e Bahia. Ali seria meu primeiro contato com a metrópole, aliás, o Cine Metrópole ficava a dois passos. A idéia era que eu ficasse provisoriamente nessa casa. Casa, não. Apartamento, um equipamento residencial inédito para mim. Até ali eu não conhecia elevador, porteiro, área de serviço, escada de incêndio. A tia, linda e elegante, amenizou o choque de minha chegada à Capital.

Detalhe do Acaiaca
Morei, depois, ocupando vaga de uma menina que estava de férias, num pensionato de simpáticas freiras holandesas, alegres, trabalhadeiras, bem humoradas. De lá, lembro com especial carinho de um chá com biscoitos que elas serviam à noite, quando a conversa rolava solta, tranquila. Apesar da altíssima densidade demográfica nos quartos, e do evidente desconforto daí resultante, era um ambiente agradável e descontraído. Saí de lá com pesar.



Sobrado de estilo
vagamente art decó
Fui para a casa de um casal sem filhos, outra vaga provisória, num sobradinho de estilo vagamente art déco. Quando a dona da vaga voltou, me instalaram num pequeno cômodo no térreo, perto da cozinha, no que seria um quarto de empregada. Nunca fui tão feliz com uma acomodação como com aquele quartinho. Pela primeira - e única - vez na vida tive um quarto só meu. Não sei por que não insisti para ficar ali. Eu deveria ter insistido. Eu não sabia o que estava perdendo.



Esquina da Av. Bias Fortes com as ruas 
Goitacazes e Rio Grande do Sul. Ao fundo,
na esquina da rua Aimorés com a Av. 
Olegário Maciel, vê-se a fábrica 
Massas Alimentícias Aymoré Ltda. 
Foto de 1930. Crédito: Elias, do blog BH Nostalgia.
De lá fui para o pensionato de uma uruguaia, na esquina de Bahia com Bias Fortes. A casa era um lindo palacete branco, com as varandas em curva. Dos seus toques de requinte, lembro-me do piso de madeira, com desenhos formados pelos tacos claros e escuros, e não me esqueço das janelas do banheiro, onde me encantavam garças e nenúfares no vidro jateado. Mas a dona do pensionato era totalmente maluca. De vez em quando, a propósito de nada, ou de muito pouco, talvez por uma roupa esquecida fora de lugar, um café fora de hora, ela nos reunia e nos passava descomposturas homéricas, gritando conosco num portunhol miserável, provocando em algumas de nós incontroláveis frouxos de riso que só pioravam a situação.



Rua da Bahia, 1955
Morei em outros pensionatos, formamos repúblicas, desfizemos repúblicas. Na caderneta que ficava perto do telefone na nossa casa no interior, minha mãe riscava um endereço e escrevia outro, numa interminável sucessão de rabiscos a testemunhar minha busca pelo lugar ideal, por um lar fora de casa. Até que me casei e saí da órbita da rua da Bahia. Por pouco tempo. Logo voltei. E um dia vim-me embora.

Daqui do planalto central, onde moro desde meados da década 1990, volto os olhos para a rua da Bahia, e a vejo como imenso rio, cujas margens percorri por mais de 35 anos a procura de mim mesma. Não sei se me achei, mas com certeza aquela rua da Bahia não encontro mais.

sábado, 29 de janeiro de 2011

FESTIVAL DE JAZZ EM CAXAMBU


A Associação Caxambu Mais promoveu na cidade do Sul de Minas o evento Caxambu Mais Jazz. De 27 a 29 de janeiro, a população pode ouvir e curtir variados repertórios.

No vídeo abaixo, a Banda Darandinos, de Juiz de Fora, apresentou ontem "Canto de Ossanha", de Vinícius de Moraes e Baden Powell, no calçadão da cidade. E o Jornal Primeira Fonte deixa aqui registrado.

(ALD)


84, CHARING CROSS. 'A ÚLTIMA CEIA'


Por Alline Storni


Daí que você já visitou o Duomo, a Galleria, o teatro Scala. O que mais tem em Milão além de gente bonita, lojas para todos os gostos e bolsos e comida boa?

Tem a Santa Ceia do Leonardo Da Vinci, por exemplo (ou a Última Ceia, ou o Cenacolo Vinciano, como eles chamam por aqui)...

Mas para isso você tem que se organizar com bastante antecedência. Porque é preciso reservar a visita ao refeitório do convento Santa Maria delle Grazie com pelo menos três meses de antecedência. Toda esta espera por 15 minutos de visita. Sim, devido à grande procura você só pode admirar o afresco por 15 minutos!

A Última Ceia foi feita por Leonardo da Vinci a pedido do duque Ludovico Sforza de Milão. A pintura é baseada no Evangelho de João 13:21 em que Jesus anuncia ser traído por um de seus discípulos. O trabalho mede de 4,6 x 8,8 e está pintado na parede do refeitório do convento de Santa Maria delle Grazie. Leonardo começou a trabalhar em 1495 e concluiu em 1498.

Você pode reservar uma visita guiada... eu recomendo. Porque a não ser que você seja um “expert” em Da Vinci, você não vai admirar a obra como se deve indo lá e olhando 15 minutos. Os guias normalmente são historiadores especializados nas obras de Da Vinci, então te explicam cada detalhe do afresco. Purtroppo, as visitas guiadas são só em inglês e em italiano!

A manauara Eva Miranda, que inaugurou a
seção 'Pindorama' nesta semana, em frente ao
Cenacolo Vinciano, triste, por não ter 

conseguido apreciar o afresco de Da Vinci.
Já que você está ali pelas redondezas e está de férias mesmo, dê um pulo no Castello Sforzesco. Só aqui entre nós, não espalha para ninguém, mas depois das 16 horas a entrada para o Museu do Castello é de graça... custa nada economizar uns eurinhos para tomar um gelato delicioso, de preferência na gelateria Le Tre Gazzelle, ali pertinho do Duomo, não é mesmo?

Ah, então você ficou curioso para saber sobre o Castello Sforzesco? Espero então até o próximo post!

Sites úteis:

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

JAZZ NO CINEMA

Por Jorge Carrano

A primeira aparição do jazz no cinema sonoro, inclusive no título do filme, realizado em 1927, foi uma fraude. Falo de “O Cantor de Jazz” (“The Jazz Singer”,  no original).

Todo mundo, ou quase todo mundo, mesmo não sendo nascido na época, o que é meu caso (sou velho mas nem tanto), já assistiu à cena  do Al Jolson (assim mesmo) cantando a  indefectível “Mammy”, seja em documentários sobre cinema, seja em vinhetas e chamadas, pelo menos.

Foi um oportunismo, para aproveitar o sucesso do cantor na época. Pintaram-no de negro, pois negros autênticos não eram bem-vindos  aos estúdios. 

De jazz, nem o Al Jolson e nem o filme ofereceram coisa alguma, foi um embuste.

Os negros continuaram não sendo aceitos nos estúdios e nem nos seletos clubes, ainda por um bom tempo.

Alguns  negros, entretanto,  faziam sucesso  no mundo artístico e o cinema, oportunisticamente, abriu-lhes as portas. Mas o fez de maneira equivocada, criando personagens bizarros.

Quem não se lembra de Louis Armstrong de turbante e pele de tigre, como um primitivo? Ou de Nat King Cole, em “Lamento Negro” (“Saint Louis Blues”), tocando aquele banjo e cantando uma música enjoadinha?

A meu juízo, o cinema só passou a dar tratamento digno ao jazz num passado mais recente, com o lançamento de dois bons filmes, no intervalo de dois anos. São “Por Volta da Meia-Noite (“Round Midnight”, de 1986) e “Bird”, de 1988, exibido no Brasil com o mesmo título original.

Alguém poderá dizer que um ano antes do “Round Midnigth”, foi realizado “Cotton Club”, em 1985. Acontece que a história principal, que aparece em primeiro plano, é policial. O mundo dos jazzistas é só tempero, é uma história paralela, secundária. Ou não?

Se você discorda, tudo bem, mas  como  o espaço aqui é meu, fica por isso mesmo.

Dizia eu que tanto “Round Midnigth” quanto “Bird”, foram realizados com muito respeito e, no caso deste último, com enorme sensibilidade pelo Clint Eastwood, que para quem não sabe é um jazzófilo top de linha, bom pianista e compositor.
O “Round Midnigth”, dirigido por Bertrand Tavernier, um francês que também é do ramo, nos permite apreciar a arte de Dexter Gordon e Herbie Hancock, entre outros, que estão lá presentes.
Aí sabe o que aconteceu em face do merecido sucesso dos citados filmes “Bird” e Round...” ? 
Em 1990, o polêmico Spike Lee, depois de afirmar em entrevistas e prévias que branco não sabe fazer filme de jazz, resolveu filmar o ”Mo’ Better Blues” (no Brasil, “Mais e Melhores Blues”).

Espero que vocês concordem que Spike foi desrespeitoso com o Clint Eastwood, diria mais, extremamente injusto, pois o ex-Dirt Harry, fez um belo filme, contando a história do Charlie Parker (o bird do filme, era seu apelido). Charlie (o do “be-bop”)* foi interpretado pelo ator Forest Whitaker, num desempenho fantástico, só comparável, provavelmente, ao do Jamie Foxx fazendo Ray Charles, no bom filme “Ray”.

Voltando ao Spike Lee e a falta de respeito e injustiça cometidos contra o Clint, ousaria afirmar que “Bird” é infinitamente superior ao “Mo’ Better Blues”. Não sou expert em cinema, como não sou de jazz, mas acho que o Clint realizou um belíssimo filme, com uma trilha sonora de arrepiar. Uma aula, até mesmo para o Spike, um sujeito que não consegue segurar a língua e  diz muita bobagem. Já se arvorou em crítico também do Woody Allen, dizendo que seus filmes não são interessantes por não terem  atores negros. A propósito, o Woody Allen é um bom clarinetista, fanático por jazz e gravou um álbum, intitulado "Wild man blues" (não tenho).

E o Spike? Vai ser ativista chato assim lá em New York. Acho que ele faz do racismo seu meio de vida, sua profissão de fé.

E conhece ou demonstra conhecer menos de jazz do que Clint,  e até mesmo do francês Bertrand. Aliás que os franceses amam de paixão o jazz. São constantes os festivais realizados em pequenas cidades, sendo um dos mais importantes o  de Juan-les-Pins na Côte d'Azur, situada entre Nice e Cannes.

Não estive lá, mas se você tem euros na gaveta, deve ir. Tenho fita VHS com  trechos de algumas edições deste tão antigo quanto badalado festival, que gravei quando exibidos pela TV cultura de São Paulo há alguns anos. Estiveram lá: Louis Armstrong, em 1967; Count Basie, em 1960, Kid Ory and Creole Jazz Band, em 1959, entre outros. Bons tempos, hein?! Mas o festival sobrevive.

Não é nada , não é nada, dei 4 dicas de filmes: “Bird”, “Round Midnigth”, ‘Mo’ Btter Blues” e “Cotton Club”. Sem falar no “Ray”, um belo filmebiografia de Ray Charles, que transitou pelo jazz, blues, soul e afins.

Para os (muitos) amantes de Billie Holiday, sugiro o filme “O ocaso de uma estrela (“Lady Sings the Blues”, no qual a diva é interpretada pela Diana Ross.
E para os apreciadores de filme romântico/musical, indico “High Socety”, no qual aparecem e cantam inclusive um pouco de jazz, Bing CrosbyFrank Sinatra e Louis Armstrong. Tem, ainda, a beleza da Grace Kelly.

E se o gosto do nobre leitor aceita musical mais clássico, assista “Hello, Dolly!”. Porque, entre outras coisas, o Louis Armstrong interpreta um líder de banda (papel dificílimo pra ele, rsrsrs) e canta a música título.

* Falarei deste movimento num próximo post.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

CORRESPONDÊNCIA URBANA

Com Ana Paula Medeiros
Professora substituta de História da Cidade e do Urbanismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e doutoranda em Urbanismo, também na FAU-UFRJ, na linha de pesquisa Estrutura, Morfologia e Projeto do Espaço Urbano.
                                                               
                                                                            "Já fui menino de rua,
                                                                           Hoje,sou um homem da estrada”
                                                                            (frase de parachoque de caminhão)

Esta conversa com Ana Paula Medeiros, surgiu de um pedido que lhe fiz para pensar sobre como o urbanista propõe novas cidades para quem tem suas veias na antiga? Lembrava, neste momento, na cidade que brinquei em criança, Nova Friburgo, na serra fluminense, onde meus olhos não encontram mais paragem que denuncie o vivido. Como diz Alline, por  amor de Dadá, alguém me explique com que olhos poderei me ver caso perca todos os meus referenciais, até mesmo a vista do em torno?
Assim como a de alguém que perdeu o que foi soterrado e que nunca será resgatado, a ida dos pertences na lama, tudo o que faz reconhecer cada um como é. Porque, para o bem e para o mal, é assim que nos definimos. 
Preocupo-me também com as UPPS nas favelas, sua intimidade rompida, telhado tocando telhado em desavenças, e encontros e o rasgo da paisagem apascentando o olhar no fim dos becos. Ruas estreitas onde a alma passa por um fio.

Enviei para Ana uma salada doida que ela devolveu assim:

“Claro que eu teria o maior orgulho de dar essa entrevista, ou, como eu prefiro pensar, conversar com vocês sobre isso, Esther. E eu gosto assim, embananado mesmo, sem as perguntas tradicionais. Fico mais à vontade para partilhar elucubrações, emaranhar fios e tecer um pensamento que, assim como eu vejo as cidades, é variado, colorido, confuso às vezes, e que vai construindo sentido em camadas e dimensões ao mesmo tempo distintas e integradas.”

O Le Goff, você sabe, é uma referência sempre importante pra mim, e em “Por amor às Cidades” ele fala tantas coisas que me calam fundo na alma!
Tenho refletido muito sobre essa questão da sustentabilidade, da inserção e interseção das cidades na natureza, essa dupla sempre tomada como dicotomia.

Uma das coisas que eu tenho começado a pensar é que a solução passa justamente por superar essa visão dicotômica e buscar a mais integrada. Eu digo integrada porque me falta uma palavra melhor, talvez fosse "holística", mas eu ainda tenho implicância com essa palavra, porque me soa sempre como se fosse escorregar ou ser interpretada como algo místico ou esotérico, e não é nada disso. Mas romper essa dicotomia significa, entretanto, superar antes de mais nada o nosso narcisismo, que ainda nos coloca como "senhores" do mundo por nomeação divina.


Quanto às favelas, acho oportuníssimo focar os temas que você propõe. Não dá pra negar que as UPPs significaram uma melhoria na qualidade de vida para a maioria das pessoas nas comunidades em que foram instaladas. Mas há um preço a se pagar por isso, e é importantíssimo analisar que preço é esse e, sobretudo, qual o papel das próprias comunidades na escolha das estratégias de ocupação e na gestão dessas novas relações com o Estado.

Eu vejo com muita cautela esse elogio excessivo à face policial do Estado, que coloca a segurança acima de outros valores como a história social, as relações constituídas, os direitos básicos à moradia, saúde, educação. Sonho com uma cidade em que a segurança seja corolário de um estado mais igualitário e equilibrado entre as pessoas e entre as pessoas e o ambiente, e não tenha que ser reivindicada como pré-condição para todo o resto.

Acabei de ser aprovada para o doutorado, na UFRJ, com um projeto de tese que pretende estudar um tema destes, com foco nos subúrbios da Leopoldina, buscando identificar estratégias de planejamento e de projeto urbano para as áreas de franja entre a cidade dita formal e a informal, partindo da hipótese de que estas estratégias, para serem bem sucedidas, precisam necessariamente incorporar a participação popular (não apenas como meia dúzia de entrevistinhas pra dizer que "consultou" a comunidade, mas como sujeitos e agentes da elaboração do projeto), e a valorização da história do lugar e das pessoas, incluídos aí não só o patrimônio construído, como testemunho de uma determinada maneira de construir a cidade, mas também o patrimônio imaterial, sob a forma de relações sociais, culturais e de memória afetiva. Ou seja, eu arrisco dizer que nossos projetos precisam ser menos formais, menos ortodoxos, menos grandiosos, e buscar uma escala mais humana, mais confortável, mais inclusiva, social e ambientalmente.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

PINDORAMA 10° 0' 0" S / 55° 0' 0" W

Esta seção fará uma viagem pelo Brasil através dos olhos de seus habitantes... Caminhar pelas estradas, vicinais, atravessar pinguelas, mataburros, entrar nas cidades, conhecer suas intimidades e delas partilhar. Quem sabe, ousar em sugerir que, ao ler as descrições cada um possa sentir sabores e perfumes de Pindorama, esta terra extensa e larga onde todos são donos, mas ninguém assume responsabilidades.

Seguiremos hoje os passos de “Eva Miranda, que é mais amazonense do que brasileira, administradora e funcionária pública federal. Tem vinte e cinco anos de sonho, de sangue e de América do Sul. Além disso, todas as tardes ela estuda Teatro na Universidade do Estado do Amazonas, enquanto sonha com dias de 50 horas”.

Conheceremos seu cotidiano, e deitaremos na rede que ela nos oferece.
Boa viagem, nesta BR.
Hoje, MANAUS.
(ELB)
UM DIA PERFEITO EM MANAUS

Por Eva Miranda

Do alto, da janela do avião, visão do nascer
do sol, tendo como palco o Rio Amazonas.

Crédito: Lucia Barreiros da Silva.
Para se ter um dia perfeito em Manaus, você precisa começar pelo início: o nascer do sol. Assistir ao sol nascendo numa latitude tão baixa requer algum sacrifício: o sol normalmente aparece no horizonte às 05h30, ou antes.

Você precisa torcer para que não amanheça chovendo. Porque em Manaus, especialmente de novembro a março, todo dia é dia de chuva. E a chuva cai (ou melhor, despenca) às quatro da madrugada, à uma da tarde e, dependendo do dia, às sete e meia da noite. Mas também há os dias em que amanhece e anoitece chovendo, aquela chuva ininterrupta, céu branco, e os amazonenses tiram dos armários as blusas de manga comprida e se orgulham de tiritar de "frio". Eu, boa amazonense que sou, quando o termômetro marca 26 graus, estou a um passo hipotermia. Juro.

Mas caso não amanheça chovendo, estamos próximos de um dia perfeito em Manaus. O céu amanhecerá azul com bolinhas brancas. Ou, sendo mais justa, o céu estará gloriosamente azul rebordado de nuvens brancas, enquanto um sol de ouro inunda a cidade de luz.

Às sete da manhã (quando é mais fresquinho), você estará suando e sofrendo com uma temperatura de 29 graus. Excelente momento pra tomar um café regional.

Curiosamente, não se usa muito o termo culinária amazonense; o usual é culinária REGIONAL mesmo. Provavelmente, o amazonense se reconhece como parte de uma identidade amazônica, compartilhada generosamente com os outros Estados do Norte. São sete estados diferentes, mas com tempero semelhante.

Café Regional significa:

a)                  o desjejum com elementos da culinária local;

b)                  o lugar que oferece este tipo de refeição. Em Manaus, tomar café na rua, na calçada, é muito usual. Minhas colegas de trabalho chegam às oito da manhã, carregando dentro de saquinhos plásticos uma tapioquinha na mão direita, e um suco ou café com leite na mão esquerda. Fumegando, comprados na banquinha em frente à repartição.

Há também o hábito de tomar "café regional na estrada". A família acorda às sete da manhã, permanece em jejum, entra no carro, pega a estrada, e após uma hora na BR - 174, quase chegando em Presidente Figueiredo, chega a um Café Regional. Não sei qual o milagre que permite que ninguém desfaleça de fome no caminho, mas provavelmente os deuses da floresta amparam os gulosos. Aos domingos, é usual ver os estabelecimentos lotados - e há Cafés Regionais para todos os bolsos e exigências de higiene.

Um bom café regional vai te oferecer sucos deliciosos e (Deus existe!) gelados. Pode contar com a presença de sucos de cupuaçu, goiaba, maracujá, e, se o café for de responsa, graviola e caju. Também deve haver o indispensável café com leite.

X-Caboquinho: o sanduíche regional
Comece com um x-caboquinho: pão francês na chapa com queijo coalho e lascas de tucumã, uma fruta laranja, salobra e gordurosa, que, acreditem ou não no que eu digo, é boa. Depois do sanduíche, coma tapioquinha. Com tucumã, sem tucumã, com queijo coalho, com queijo normal, com castanha, com leite condensado, com margarina, derretendo, saindo fumaça, o amido levado às últimas consequências.

Ah, e frutas. Você certamente terá abacaxi gelado (e o abacaxi do Norte é doce, amarelinho, não é aquela coisa branca e corrosiva do Sul e Sudeste), melão regional gelado (e o melão daqui é rosado e doce, não é aquela coisa verdolenga e salobra do Sudeste), melancia gelada, manga gelada, pois realmente Deus existe e o ser humano inventou a geladeira.

Banana verde frita
Mas cuidado ao fartar-se de frutas, porque você deve reservar um lugarzinho para comer banana frita. E em Manaus, a banana frita atingiu seu nível de excelência, meus queridos. Você pode decidir entre a banana frita doce com calda, doce sem calda, salgada macia, salgada crocante (que a Elma Chips ainda não descobriu), bolinho de banana verde frita. Dizem que os esquimós têm onze palavras para neve; não entendo como o amazonense ainda não criou termos específicos para as inúmeras variedades de preparo da banana frita. Você ainda não teve uma congestão? Vai um bolo de macaxeira com erva-doce, ou um bolo de tapioca? Mingau de banana, de tapioca ou de milho branco - que você chamará de mungunzá?

Para fazer a digestão dessas delícias todas, bom mesmo era deitar numa rede, mas vamos fazer uma caminhada. Venha comigo, eu te levo pela mão. Em outro dia eu te mostro a cidade.

Eva contra onça

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A vida no TOM certo !


Homenagem do Jornal Primeira Fonte ao grande mestre da MPB, Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, que completaria hoje 84 anos.

QUITANDA DA VIDA XII

Por Telinha Cavalcanti

Musse de Limão

Eu devia ter vergonha de escrever essa receita, pq receita de dois ingredientes é ridícula. Mas se você tiver tacinhas de vidro bonitinhas, essa musse se passa por coisa complicada e fina :)

Musse de limão:
1 lata de leite moça
suco de 3 limões, ou mais, ou menos.

Coloque o leite moça no liquidificador. Junte o suco de limão. Bata bem e divida nas tacinhas. Guarde na geladeira. Fim.

E essa musse ainda pode ser de maracujá. no caso, use suco natural. O sabor é docinho e intenso, e você bota mais ou menos suco de acordo com sua vontade, claro.

Na hora de servir diz que foi complicado, ué :)

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

FANTE JOGA A REDE

Por Dade Amorim

John Fante. Pergunte ao pó. 6 ed. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. 206p.

Quem começa a ler a história do jovem escritor em começo de carreira num quarto de hotel barato em Los Angeles pode pensar que se trata de uma história sem maiores novidades. Bem escrita, com certeza (embora a tradução deixe um pouco a desejar), falando de apertos financeiros, esperanças, pequenas vitórias sem muita expressão, indispensáveis para alimentar a vontade de chegar lá.
Mas a obra de Fante se desenvolve num crescendo, e logo fica impossível largar o livro sem que graves motivos de ordem prática nos obriguem. Mesmo o desencontro amoroso do tipo “João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili / que não amava ninguém”* vai sendo revelado de um jeito ardiloso, que lentamente envolve o leitor numa rede irresistível.
Ao fim de uns tantos capítulos, você não está mais lendo uma história, mas vivendo as agruras de Bandini, que encarna um tipo com o qual a gente se identifica facilmente. Quem não se reconhece em suas certezas inabaláveis de dez minutos, no amor agridoce, tecido de ódio e êxtase, nas lutas interiores e nas culpas de cada dia, nas reações desproporcionais? Mutatis mutandis, Arturo Bandini é uma versão menos heavy do Philip Carey de Maugham – embora também inesquecível.
___

*C. D. de Andrade, em “Quadrilha”.


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ESCREVER É UM QUESTIONAMENTO


Safran Foer, Jonathan. Extremamente alto & incrivelmente perto.  Trad. Daniel Galera Rio de Janeiro: Rocco. 2006. 360 p.

Jonathan Safran Foer, um jovem vencedor, autor de Extremamente alto & incrivelmente perto, seu segundo romance, escrito em 2006, declara que, mais ou menos como acontecia com o inglês W. H. Auden, escreve para descobrir o que pensa. Enfim, mais um escritor que se anima a dizer que escreve, não por uma estranha compulsão, uma vocação irreprimível, mas por uma espécie de curiosidade intelectual.
Menos um candidato congênito a virar estátua. Nada contra quem vira. Nada contra fardões, academias e lauréis, quando expressam o reconhecimento da sociedade ao trabalho de um escritor. Mas tudo contra menininhos(as) que já começam a carreira com pose de predestinados à glória. Desmistificar a escrita (assim como qualquer trabalho de criação) me parece uma virtude e uma necessidade.
Aliás, nem é a pose que torna um autor consagrado. No caso de Froer, parece que o rapaz tem tudo para se tornar um desses. Seu primeiro livro, Tudo se ilumina, abriu caminho à promessa de uma obra memorável, em que o humor sarcástico e uma narrativa muito sintonizada com seu tempo tecem um texto excelente em torno do 11 de setembro.
 O enredo envolve segredos da família de Oskar Schell, um menino de sensibilidade excepcional e grande auto-suficiência que ficara órfão de pai ainda criança durante o atentado ao World Trade Center. Tais segredos são rodeados de narrativas sobre fatos do passado.
A obra mostra um autor ainda mais afinado, de texto consistente, tingido de seu conhecido humor e traços de melancolia, que o tornam mais balanceado, onde Foer descreve com propriedade e talento a solidão do garoto e sua relação intensa com o pai morto, e com a mãe, menos próxima e de parcas afinidades com o filho. Descreve também as atividades variadas a que ele se entrega – dando aulas, enviando cartas frequentes a Stephen Hawking e dando asas à criatividade de muitas formas, algumas extremamente surpreendentes. Os interesses de Oskar e o arrojo com que os movimenta fazem do livro um prato cheio, ao qual não falta uma boa dose de aventura. O que o menino realiza é uma espécie de resgate, algo que mantenha em alguma medida a presença do pai atenue a dor por sua perda. Mas a narrativa de Foer não tem nada de banal, e o leitor dificilmente se cansaria de segui-la passo a passo. Há ainda vertentes alternativas da saga familiar, como o trecho narrado por seu avô, de quem ele se sente mais próximo.
As diferenças de linguagem entre os personagens de Tudo se Ilumina se repetem, assim como as gráficas, em que são utilizadas imagens em forma de fotos e desenhos, diálogos tratados de forma original e outras surpresas.
           Jonathan Safran Foer é um autor pós-moderno sem truques ou exploração de contrastes supostamente reveladores. Ao contrário, ele trata da história de seu país e da mentalidade americana de seus personagens, um tanto confusa na era de Bush.