segunda-feira, 11 de março de 2013

"Woman is the niger of the world"




 
                                                              Babel Lavanere


Quando John Lennon fez essa letra, sabia o que estava dizendo.
Desigualdade por desigualdade, há uma estreita semelhança entre a limitação e o constrangimento impostos aos negros arrancados da África para servirem de escravos nas Américas e o tratamento discriminatório dado às mulheres durante os séculos em que se formava nossa famosa civilização ocidental cristã (e machista).
Não sou feminista xiíta, nunca queimei sutiã nem acho os homens desprezíveis. Ao contrário: por experiência própria, estou convencida de que um homem pode ser a melhor coisa do mundo para uma mulher. Mas os resquícios da mentalidade arcaica ainda se fazem sentir em nossa sociedade muito mais do que seria admissível a essa altura.
O que é triste. Parece que a humanidade nunca vai se ver livre da figura imperial de um macho exercendo seu poder de origem obscuramente divina sobre os outros seres, todos propriedades suas, dependentes de sua boa ou má vontade e tementes de sua ira. Ainda hoje, muitos homens têm essa imagem como ideal de virilidade e força, não importa sua origem, cor ou posição na sociedade. Cada qual a seu modo, continuam controlando suas mulheres, negando-lhes uma vida própria, às vezes até se achando no direito de agredi-las (quantos!) ou tirar sua vida. A figura do assassinato como defesa da honra só caberia mesmo num aparato legal elaborado por e para os machos da espécie. E se essa figura saiu do corpo da lei, continua entranhada na mentalidade de tantos e tantos homens, muitas vezes ignorantes, mas em muitos casos letrados e donos de um diploma qualquer, o que não os impede de continuarem incapazes de refletir ou tirar conclusões sobre o significado de ser um homem.
Nem precisa ser um Homem com H maiúsculo, como dizia vovó, referindo-se a algum figurão da política ou da ciência. Basta perceber que ninguém – homem, mulher, branco, negro, amarelo ou índio, adulto ou criança, rico ou pobre – pode ser apropriado por um semelhante. Basta entender que um ser humano, seja de que sexo, raça ou religião for, tem direito à liberdade de escolher seus rumos, sua profissão, o ser amado, o tipo de vida que prefere levar. E que o amor incapaz de se empenhar em fazer o outro feliz não é digno desse nome.
Abstraído o lado mercantil da data, dedicar um dia à mulher é mais ou menos como abrir cotas especiais para negros nas universidades. Um jeito de tentar reparar a opressão e a negação da liberdade, com todas as conseqüências que daí advieram: de um lado, a casta de párias a que os escravos deram origem nas terras do exílio e do trabalho forçado; de outro lado, as mulheres submissas, ignorantes e/ou exploradas, espancadas, usadas como objeto sexual e postas de lado, com ou sem filhos para criar sozinhas, ou sumariamente executadas como bodes expiatórios de homens que se prevalecem da força física e da conivência silenciosa de outros igualmente truculentos ou amedrontados.
Por isso, no Dia Internacional da Mulher, pensei nas amigas e leitoras. Mas esse dia deve celebrar também os homens, porque precisamos deles tanto quanto precisam de nós, para construir um mundo onde amar e ser amado sejam sinônimos de ser e fazer feliz.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Rir, verbo circunstancial





Nunca vi um verbo tão advérbio quanto esse. Tudo que se faz ou diz pode ser modificado ou condicionado, já se sabe, mas rir é demais. Por natureza pouco conspícuo, muda de sentido dependendo da preposição que o acompanhe.
Se você disser rir de, pode estar se referindo a uma piada, a alguém – por brincadeira, ironia, deboche ou calhordice – ou a si mesmo, caso em que demonstra um espírito amadurecido e um caráter forte, já que poucas pessoas são capazes de rir de si mesmas. A maioria prefere que os outros chorem junto ou acha seus defeitos ou problemas sagrados demais para merecer qualquer forma de riso. Em alguns casos, no entanto, rir de pode ser uma forma de apoio e até sinal de carinho, demonstrando que o outro está entendendo e tentando aliviar uma saia justa.
Rir para alguém pode significar simpatia, tentativa de abordagem ou paquera; mas se o objeto do riso é uma imagem ou coisa, ou se ri para o nada, você pode ser um delirante, aparvalhado ou estar sob forte emoção, o que é quase a mesma coisa. Já rir com é uma prática das mais saudáveis, porque é o primeiro passo para um convívio ameno, a formação de uma amizade ou a revelação de uma grande afinidade com alguém. Faz muito bem à cabeça rir com outra pessoa – é o antônimo mais perfeito de solidão que eu conheço.
Talvez por isso se diga que o homem é o único animal que ri. Tamanho espectro de significados para um só verbo é coisa de gente, por mais que alguns animais, como o cachorro, em momento de euforia, pareçam estar rindo, acho arriscado imaginar que saibam que riem e impossível acreditar que sejam capazes de tamanha polissemia.

domingo, 3 de março de 2013

SENHORA DO DESTINO: DIVIDINDO A CONTA

Vera Guimarães


Em meados da década de 1950, época do Plano de Metas de JK, em plena expansão econômica, da substituição de bens primários por industrialização, expandiram-se também os agentes financiadores, entre os quais o Banco do Brasil. Meu irmão mais velho foi trabalhar na agência do BB em cidade próxima a Sete Lagoas. Assim que a família se instalou, fomos visitá-los minha mãe, a sogra dele com dois filhos e eu.


Numa das tardes, nós, as crianças, por puro desfastio e alguma gula, decidimos fazer uma vaquinha para comprar uma lata de leite condensado, maravilha das maravilhas que não dava sopa nas despensas comuns.

O leite condensado foi criado para complementar a alimentação dos soldados nas guerras. Aqui está um pouco da sua história. Até hoje é dos produtos mais queridos da mesa brasileira. Eu, ligeiramente diabética, quando sinto precisão de furar a dieta, transgrido logo com leite condensado. Já que é pra fazer algo errado, que valha a pena! Alguém se lembra desta embalagem?

Aí as crianças, aquelas lá de cima, começaram a negociação. Quanto custa uma lata? Quanto você tem? Somos três, então... Um deles, o menor, quando viu o montante que lhe caberia, disse que não entraria no rateio. Nós ainda avisamos que, então, ele ficaria de fora da degustação. Ele não deve ter acreditado. Nem os adultos, que já se divertiam com a história.  Mas não cedemos ao choro do menino e comemos/bebemos/lambemos nosso leite condensado inteirinho.

A história faz agora parte do anedotário da família e eu fico encabulada quando alguém faz troça e se lembra dela, até os próprios protagonistas. Sinto-me uma desalmada, coração de pedra, uma pessoa rígida e radical. Sei que me perdoam levando tudo à conta de sermos crianças.

Pois dia desses soube do seguinte: amigos do clube, uma turma de rapazes com idades em torno dos 70 anos, costuma se reunir em cafés, bistrôs depois do esporte. Pedem as bebidas, os petiscos e ali passam uma boa parte da tarde. Se um deles diz que não vai querer comer nada, ao escolherem o petisco alguém já dá logo o aviso: “Se pegar UMA batatinha, divide a conta!”

Estou perdoada, não estou?    



Imagem: Make Basiko