sexta-feira, 30 de agosto de 2013

SENHORA DO TEMPO - DANSE AVEC MOI!

Por Vera Guimarães


Ilustração: Patrícia Caetano
Numa de minhas mais remotas lembranças estou, aos quatro anos, em cima da mesa de ardósia fazendo passos de balé, em ponta, os dedinhos virados para dentro do pé. Onde eu teria visto balé? Na década 1940 ainda não havia televisão nas casas, eu provavelmente ainda não teria ido ao cinema. Devo ter visto algum espetáculo numa escola, ou alguma irmã ou prima tenha trazido a delicadeza de braços e rodopios para minha até ali curta existência.

Ouvíamos muito rádio, cantava-se bastante. Mas acho que nunca vi minha mãe dançando. Meu pai, ao embalar alguma criança, sempre o fazia gingando com gosto. Nas festas na roça, ele se juntava ao batuque e levantava poeira nos pátios e alpendres.

Em casa, mesmo sem vitrola, em algum aniversário se improvisava uma dança. Os jovens passavam a tarde instalando algum aparelho emprestado, selecionando os discos, aqueles pretos, pesados, que só tinham duas músicas, o lado A e o lado B. Ou tinha-se a sorte de haver algum programa de rádio com uma seleção musical dançante.

Numa dessas reuniões, aos sete anos mais ou menos,tirei para dançar um dos convidados, um moço encantador, amigo das irmãs mais velhas. E lá ia eu, segurando na aba do paletó dele. Ai, que vergonha!

Quando comecei a ir ao cinema, tive a sorte de estar no auge a era dos musicais da Metro. Depois de cada Fred Astaire, cada Ginger Rogers ou Leslie Caron, as amigas e eu passávamos algum tempo tentando repetir os passos cheios de graça e leveza que víamos na tela. E ia eu cedinho para a escola fazendo, entre o passeio e a rua, alguns dos passos de Gene Kelly em Cantando na Chuva.

http://youtu.be/D1ZYhVpdXbQ

Aos 13 ou 14 anos, comecei a frequentar festinhas de aniversário em que havia dança, e depois as horas-dançantes, reuniões em que o propósito era mesmo dançar. E dançávamos ao som de Waldir Calmon, Trio Iraquitan, Jean Paques et sa Musique Douce...


O protocolo era meninas pra cá, meninos pra lá. E o rapaz devia vir convidar a menina para a dança. Acho que um dos maiores motivos de eu nunca ter querido ser homem está nessa possibilidade horrenda de levar um não nessa hora. Olha, é preciso muita coragem para um rapazinho atravessar o salão, debaixo do olhar dos amigos, e abordar uma garota.E havia meninas que recusavam o convite. Exatamente assim:



Combinávamos entre nós, as amigas, estratégias para nos livrarmos de parceiros indesejáveis, aqueles que fossem mais feios que o aceitável, que dançassem mal, que tivessem mau hálito, aqueles inconvenientes que apertassem a parceira além da decência, ou além da querência dela.
Havia um calendário de bailes: aniversário do clube, Baile da Primavera, os bailes de formatura. 
Além desses, provocava expectativa na moçada o anúncio da vinda de alguma orquestra grande, tipo Cassino de Sevilha, em atividade até hoje.

1954 - Apresentação da Orquestra de Espetáculo Casino de Sevilla, em Laguna - Clube Blondin

Orquestra Casino de Sevilha - http://www.lagunista.com/4069/176864.html

Os bailes aconteciam no salão nobre do principal grupo escolar da cidade, na sede social de clubes de futebol e, no caso dessas grandes orquestras, até no salão de concessionárias de veículos ou no galpão de oficinas mecânicas. O salão da Ford tinha um lindo piso de cerâmica vermelha, bem dançável, mas o da Auto-Mecânica, cimentão grosso, deixava a desejar. Mesmo assim, tudo era festa.


Eu me lembro com especial enlevo do salão de baile na sede social do Democrata Futebol Clube. Era uma casa de esquina, com varandas em arco, pilastras bojudas, toda a construção em branco e vermelho, as cores do clube.


Entrávamos por um portãozinho num murinho baixo (Sem grades? Configuração impensável hoje.), subíamos uns quatro degraus, que pareciam majestosa escadaria, e estávamos na varanda, que fazia um L e se prolongava pela fachada da direita. Entrávamos no hall, nas laterais os toaletes, à esquerda a escada que conduzia ao balcão onde ficava a orquestra e de repente estávamos no salão. Ao fundo, o bar, nas laterais, as mesas. No centro de tudo, o salão, cenário de tanto divertimento, tantas aflições, tantos flirts, tantos rompimentos, tanto encantamento, tantas decepções.


Sim, nos bailes, nas danças, nas recusas de danças, na permanência com o mesmo par, ou na rapidez na dispensa dele (“Com licença, F. está me chamando!”) desenrolavam-se os dramas dos amores jovens. Danças davam recados. Criavam laços. Desfaziam nós. Consolidavam afetos.

O cinema soube traduzir com danças alguns desses momentos memoráveis, momentos nos quais as palavras são inúteis, ou dispensáveis, ou supérfluas. Estas são algumas das minhas cenas preferidas:
- em HOPE FLOATS,   , o personagem de Harry Connick Jr consegue com insistência e uma dança fazer com que a personagem de Sandra Bullock toque a vida depois de uma decepção fenomenal.


- em SUMMER OF ’42 , auge da II Guerra, a protagonista enfrenta a perda indizível numa dança com o adolescente que a venera.


- em PICNIC , os personagens de William Holden e Kim Novak  definem os rumos da trama (e de suas vidas) ao som de Moonglow.


E você, querido leitor, quais são suas melhores cenas de dança?
Depois que parti para a vida universitária, de trabalho, depois casamento, pouco dancei.
Hoje, precisada de um exercício aeróbico, não conseguia uma atividade que me agradasse. Caminhar, correr, nadar, andar de bicicleta, não. Nada me agradava. Até que descobri o 
dancercise (dança + exercise), onde, três vezes por semana, na companhia de outras jovens como eu, me acabo, feliz, dançando como se não houvesse amanhã e como se não tivesse ninguém olhando. 

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

EMPALANDO URUBUS



Eloísa Helena Maranhão



Depois que escrevi, pensei, e não é que escrevi pra Cris, também? Pois fica para a Cris, minha prima Paulovich, que tem a coragem de empalar urubus e cagar na vida. Espero que fique como consolo por tudo que fizeram com ela. E que essa coragem lhe seja imputada como galardão.








“E se, de repente, a gente não sentisse a dor que
a gente finge, e sente? (Chico Buarque)

“Cagados de todo o mundo, uni-vos.”
(paráfrase de Karl Marx)

Era uma personagem portinariana, assim de um jeito esquálido, desengonçado, barriguda, cabelos desgrenhados. Andava pelas ruas de terra num vestido de chita colorido, amarelo, vermelho e verde, com uma sombrinha preta. Para combinar com o urubu, daqui a pouco.
Nunca chovia no sertão, não carecia de sombrinha para o sol, também, por que já tinha os miolos moles. Tinha dormido muitas vezes com o rosto descoberto, banhado de luar; tinha, também, bebido água de poços profundos, contaminados com água de outros lençóis subterrâneos. Todos sabem que lua sem véu e poço estrangeiro prejudicam os miolos. Miolos perfeitos exigem véu, muita sombra e o conhecido, nada de estranhezas. Ela era uma prejudicada.
Virou retirante da humanidade, andarilha, sem eira nem beira, empinada em cima das sandálias altas. Há que ter saltos altos, muito altos, os com prejuízo. Seus olhos perscrutavam horizontes outros, procuravam as fontes estranhas que alimentavam o poço na aridez. De tanto beber em poço e mirar aquele sem fim, ficou também, sem fundo nem chão. De vestido, sandália e sombrinha, o essencial, nem calcinha usava. Uma pura, básica, só de lua poço sol. Sem véus nem sombras.
Sem raízes, solta no espaço, assim de um jeito desengonçado, se equilibrando nos saltos, com auxílio da sombrinha.
De tanto ser retirante, mesmo contra a vontade, que, olha!, nunca pensou assim, vou sair por aí, cair no mundo perambulando, mas virou andante, perdida de tanto se retirar. Não tinha mais pra onde ir, pra onde voltar, caminho traçado, rota fixa, nexo, senso, norte. Uma sem noção. Se era sol ou era vento, temporal ou calmaria, pouco se lhe dava, se fiava só em si, vivia de dentro pra fora, exalando-se a si mesma. Suava, peidava, arrotava, recendia mau cheiro. Fedia de empestear.
Não era de estranhar que vivesse seguida por urubus. Tinha uma fieira deles sobrevoando-a por onde fosse. Era a rainha dos urubus, deusa das aves funestas. Só pescava em curva de rio. Sua sombrinha vivia coberta de merda dos urubus, parecia craca, a merda seca. Uma nau sem rumo, casco invertido, grudada de cracas afiadas, singrando seu bodum pelo oceano. Retirante.
Nunca encalhava, passava ao largo e por cima dos esqueletos, cabeças de vacas, cactos secos, raízes expostas, pedras nem se fale, de todo tamanho, tropeçava, caía de se esfolar no meio do poeirão, se chorava era pior, grudava a lama na cara, sujeira além do bodum.
Um dia cansou de urubu, aquela voação, esperneou, xingou, atirou pedras, e eles lá, pacientes e cagando. Encontrou um vendedor ambulante, dormiu com ele, matou o pobre de sexo. Ou de bodum. Ou dos dois. Apoderou-se do espólio do finado, dezenas de sombrinhas pretas, enfiou-as na terra seca feito jardim, o cabo pra cima.
Conforme os urubus desciam sobre o cadáver, ela caçava um por um, preso entre as pernas, as asas imobilizadas com uma mão; com a outra empalava o urubu. Esse não caga mais.
Fez um pomar de urubus empalados no sertão, os cabos das sombrinhas enterrados, urubu imóvel, asas arriadas, enrabadinhos. Todos de perfil, desenho de um Dalí egípcio, uma cena de Buñuel sertanejo, velhas aldeãs portuguesas sentadinhas nos bancos da paróquia.
Ficou livre, a retirante, e assumiu os urubus. Passou a andar batendo asas, grasnando, coberta de penas negras, cagando no mundo. Cada vez mais, e mais longe. Quem tem tempo, caga longe.
Nalgumas noites dá pra vê-la, assentada nos umbrais, imóvel, olhando pra mim e dizendo: never more.
Desta vez não vou matar a personagem. Merece viver, quem caga no mundo e empala urubus com sombrinhas. Quem vai morrer sou eu, daqui em diante.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

SENHORA DO TEMPO. TRILHANDO A MEMÓRIA

*
Por Vera Guimarães





Fui criança nos anos 1940/1950. Naquele tempo, o interior de Minas se ligava por trilhos. Para qualquer direção que mirássemos, havia uma linha, um ramal, uma viação. Central do Brasil, Viação Férrea Centro-Oeste, Cataguases-Leopoldina, Vitória-Minas me eram familiares e por eles viajei.

Filha mais nova, eu sempre acompanhava minha mãe em viagens de visitas a parentes e amigos, a maioria delas feitas por trem. De Sete Lagoas íamos, rumo ao norte, a Wenceslau Braz, Carvalho de Almeida, Araçai, Cordisburgo, Curvelo, Corinto e Diamantina.

Em Cordisburgo, ponto de almoço, havia o Hotel Argentina, ao qual se chegava subindo, a partir da estação, o que aos meus olhos de menina era uma escada majestosa. Não me lembro de haver feito refeição ali. Devia ser caro para nosso orçamento. Levávamos nosso próprio farnel. Aliás, voltando de uma viagem a Curvelo, onde ganhamos abacates, num trecho da viagem minha mãe abriu um deles e ali mesmo o saboreamos. Nunca um abacate foi tão saboroso.

Eu teria uns 13 anos quando meu irmão mais velho foi trabalhar no Banco do   Brasil em Carlos Chagas MG. Logo que ele se casou, fomos visitá-lo durante   minhas férias escolares. De Sete Lagoas até lá vivemos uma odisséia, quatro dias de trechos diurnos e noturnos, paisagens inéditas, vendedores de quitutes e frutas, mulheres com pencas de crianças, gente entrando e saindo, samburás, malas, uma cabra, gente dando sinal fora da parada (e o trem obedecendo), baldeações, pelo menos três viações: Central do Brasil, Vitória-Minas, Bahia-Minas.

Já adolescente e atleta do vôlei da Escola de Comércio, fiz com o time uma viagem para Vespasiano, hoje tão perto, naquele tempo uma viagem. Morávamos na rua da linha férrea, o trem saia cedinho e eu não acordei na hora certa. O técnico veio me buscar e disparamos os dois esbaforidos pela rua que amanhecia. Foi a conta de chegarmos e o trem partir.

Com outro time de vôlei, o da Praça de Esportes, fui a Montes Claros. Saímos à noite, fizemos baldeação em Curvelo ou Corinto e só chegamos ao destino pela manhã. Sonhos, paquerinhas, flirts, músicas sussurradas, casos, anedotas, confidências, tudo cabia no espaço de uma viagem de trem.

Minha primeira ida ao Rio foi pelo Vera Cruz, também conhecido pelo poético nome de Trem de Prata, deslumbramento com a viagem e com o destino.

Atrás, a Estação Ferroviária de Belo Horizonte, 
hoje estação de passageiros e Museu de Artes e Ofícios

Estão vivos na minha lembrança o ruído das engrenagens dos comboios, o   desequilíbrio sutil ao andar por seus corredores, o frio na barriga ao atravessar a céu aberto a passagem de um vagão para outro, o cheiro único da maria-fumaça, a cadência tlecti-chitlequetlequeti-chi-tleque-tleque, as paisagens se sucedendo, “os dois lados da janela”, as gentes ao longo dos trilhos, a fagulha inesperada no rosto, os precários banheiros, o som plangente do apito numa curva do caminho...  Era nossa  rotina nos deslocarmos, por divertimento ou por necessidade, através das   ferrovias. Todo mundo o fazia: jovens, velhos, pobres, doentes, ricos, urbanoides, roceiros e suas cargas, negociantes, atletas, caixeiros-viajantes...

Sempre que viajo para fora do Brasil, procuro um trem. Conto isso para dizer que por lá a ferrovia está viva, vivíssima, e serve para os mais variados deslocamentos, curtos, longos, transcontinentais, atravessa metrópoles, o deserto de Gobi, o mar do Norte, proporciona contemplação, favorece convivência durante o trajeto, igualzinho nossas antigas ferrovias.

Apesar do pouco tempo disponível, fizemos questão de “perder” um dia inteiro para ir de Budapeste a Munique por ferrovia. Pela janela, passaram paisagens de cartão postal, lavouras recém-semeadas, casal de faisões ciscando a terra, veadinhos se embrenhando na mata rala ao barulho do trem, igrejas com cúpula “cebola”, crianças ciganas, bandos de estudantes, bandos de corvos.

De Porto a Lisboa, examinando tabelas, horários e roteiros, e devido a nossa ignorância e à especial sonoridade das palavras no português de Portugal, tivemos frouxos de riso imaginando e inventando significados bizarros para nomes das estações. O que seriam Alfarelos? E uma Albufeira? O que uma Trofa? Já Celorico da Beira nos lembrou um lavrador muito simpático e prestativo. Estarreja? Pampilhosa? E os bobos se acabavam de tanto rir.   

De Londres a Paris, fomos de Eurostar, por baixo do canal da Mancha. De inesperado e fascinante, a St-Pancras International Train Station de onde parte o trem. Fiquei apaixonada por sir John Betjeman, de quem até então nunca tinha ouvido falar, o poeta que lutou para que o prédio não fosse demolido. Vejam nós dois aqui:


Por aqui, no Brasil, praticamente só existem pequenos ramais turísticos, melhor que nada. Levei os filhos pequenos a Sabará pelo trem subúrbio. Fiz com eles Curitiba-Paranaguá. Passeei na maria-fumaça entre Tiradentes e São João Del-Rei, recentemente, e chorei de saudade. Quando soube que a Vale atrelou um vagão de passageiros a sua linha de carga entre Belo Horizonte e Vitória, lá fui eu nas 12 horas entre as duas cidades. Ainda não havia ar condicionado e fazia um calor absurdo ao atravessarmos a região do Vale do Aço. Com a janela aberta, poeira e fuligem entrando, ganhamos bigodes e sobrancelhas enormes e divertimento que não estava incluído na tarifa.

Pela época em que entrei na vida adulta, começou o desmonte de toda nossa rede de transporte ferroviário. E gradativamente foi-se acabando esse transporte democrático, limpo, seguro, acessível, divertido, saudável, poético. Vi suas lindas estações em estilo inglês serem demolidas, ruírem pelo abandono ou virarem centros culturais. A cada dia temos notícia de pilhagem de seus trilhos e vagões, de ocupação do leito das ferrovias por camelôs, de dormentes sendo transformados em mobiliário rústico chic, de vagões que viraram lanchonetes.

Às vezes tenho lampejos de esperança, como, por exemplo, ao ter conhecimento de que existe uma Associação Nacional de Preservação Ferroviária. Passeiem pelas fotos, pelos links, conheçam locomotivas e estações antigas, vejam as estatísticas.

Também fico feliz ao ver que na criação do Museu de Artes e Ofícios, localizado na estação ferroviária de Belo Horizonte, adotou-se o conceito de museu vivo, conciliando a exibição do magnífico acervo de objetos e da montagem de ambientes relacionados a trabalho com a revitalização e funcionamento, de verdade, do serviço de transporte de passageiros.

Infelizmente o site TREM DE DOIDO, pelo qual eu amava passear, virou uma antiguidade internética e está abandonado. Espero que vocês, como eu, se enterneçam principalmente com os gifs animados da galeria 2.

A poesia que acompanha linhas e vagões e chegadas e partidas está em algumas de nossas melhores canções: O TRENZINHO DO CAIPIRA, de Villa-Lobos; TREM DAS CORES (“As casas tão verde e rosa que vão passando ao nos ver passar, os dois lados da janela...”), de Caetano Veloso; TREM AZUL, de Lô Borges; O TREM DAS SETE, (“Ói, é o trem, não precisa passagem nem mesmo bagagem no trem...”), de Raul Seixas; NAQUELA ESTAÇÃO, (“E o meu coração, embora finja fazer mil viagens, fica batendo parado naquela estação...), cantada por Adriana Calcanhoto, de Caetano Veloso, João Donato e Ronaldo Bastos; TREM DO PANTANAL, (“Enquanto este velho trem atravessa o pantanal, só meu coração está batendo desigual...”), consagrada por Almir Satter, autoria de Simões e Roça; ENCONTROS E DESPEDIDAS, de Milton Nascimento e Fernando Brant (“A plataforma desta estação é a vida deste meu lugar..”); TREM DAS ONZE, de Adoniram Barbosa, unanimidade nacional, cantada em todas as rodas; GENTE HUMILDE, de Garoto, Vinicius e Chico (“Eu, muito bem, vindo de trem de algum lugar...”); PONTA DE AREIA (“... ponto final da Bahia-Minas, estrada natural ... caminho de ferro mandaram arrancar...”) e tantas outras. 

Não gosto de nessas crônicas dar um tom de “Ah, o bom era antigamente!”, mas neste caso só posso lamentar profundamente as decisões que acabaram com nosso transporte ferroviário. Desculpem-me, amigos!


* Esta Crônica de Vera Guimarães foi publicada no domingo, 3 de abril de 2011. Aí, veio a Patrícia Caetana e fez uma linda ilustração. Dois motivos para ser republicada : a beleza do escrito e a nova ilustração.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Igreja da Candelária, RJ




Falar das belezas naturais do Rio de Janeiro tornou-se repetitivo.  Uma delas é a igreja da Candelária, bela construção que merece ser vista. Outras igrejas, como a da Glória e tantas outras merecem também uma visita.
Mas o Rio tem muito mais que lindas paisagens, floresta, parques e praias deslumbrantes. Alguns podem acrescentar "tem também favelas, violência, comércio ilegal e traficantes" – que hoje andam sumidos, presos ou temerosos de se expor, diante da boa política de segurança que ora alivia nossos temores.
Mas além da natureza abençoada e de uma arquitetura digna de admiração, existem no Rio bons programas de lazer e cultura para atender a todos os gostos.
 Sugestões para quem pretende visitar o Rio em 2011:
 ·                    Na Praça XV de novembro estão o Paço Imperial, linda construção colonial que funciona hoje como um centro cultural com cinema, restaurantes, exposições temporárias e manifestações musicais; o Convento dos Carmelitas, o Arco do Telles – onde na casa 13 morou Carmem Miranda e onde acontecem happy-hours memoráveis, nos bons bares e restaurantes locais – e a Travessa do Mercado, todos eles parte importante da memória do Brasil. Ali começou a história do Rio.  Seus bares, restaurantes, feiras, museus e intensa movimentação popular são atrações para muita gente que trabalha no centro da cidade e também para quem vem de mais longe curtir algumas horas de lazer.
·                    No Centro Cultural do Banco do Brasil, prédio de 1906, estilo neoclássico, que foi sede do Banco do Brasil até 1986, há um polo cultural com excelentes mostras de pintura, fotografia, um acervo permanente e algumas exposições temáticas sempre bem cuidadas. Promove debates sobre assuntos variados, sessões literárias etc. Salas de cinema e vídeo, teatros, shows de música frequentes no foyer. Há também uma casa de chá e um restaurante refinado. Biblioteca de 140 mil exemplares.
·                    Vizinha ao CCBB, na Visconde de Itaboraí n. 78, a Casa França-Brasil tem sempre mostras de arte, um cinema que funciona de terça a domingo e um bom bistrô, além da própria construção que vale a pena conhecer. Também pode ser encontrado lá farto material de pesquisa sobre temas ligados à douce France.
·                    Logo atrás do CCBB e da Casa França-Brasil, vale a pena explorar as ruas estreitas que datam dos séculos XVIII e XIX, onde a gente encontra fácil um bom restaurante instalado num casarão de pé-direito quase a perder de vista e bons lugares para um chope e um papo de fim de tarde.
·                    Na Marechal Floriano 168, o Centro Cultural Light tem sempre atrações interessantes, shows e exposições, e é em si mesmo outro exemplo da arquitetura neoclássica que predominou no Rio antigo.
 Outros pontos da vida cultural merecem atenção: a Biblioteca Nacional, com programações atraentes e a Academia Brasileira de Letras, que oferece palestras e cursos.

HELLO, DOLLY! QUERERES POSSÍVEIS




Dorothy Coutinho


Achar que a inscrição “querer é poder” é possível, me levou a sonhar, sonhar, mas me tornei apenas a pessoa que podia ser. Se tudo dependesse do “querer” como parecia nas minhas ilusões de menina, eu teria passado boa parte do meu tempo olhando pela janela, não para ver as árvores ou as nuvens como fico hoje, mas bocejando na prisão da busca pela excessiva coerência.

Queria ser uma daquelas princesas dos contos de fadas, lindas, com seus namorados guerreiros fantásticos, todos morando em castelos encantados.
Mas, li anos depois em algum livro que as jovens medievais ficavam muito cedo desdentadas, os guerreiros morriam ainda adolescentes de doenças ou na guerra, que não se tomava banho, e que as donzelas faziam xixi em pé. Para isso, bastava levantar um pouco as longas saias.

Queria me tornar uma mulher adulta segura de mim, sem carência afetiva, dona do meu nariz, linda, rica e poderosa. Me via deitada num sofá, comendo chocolates, com dúzias de servas, mucamas e lindos e formosos eunucos para me atender.
Na contrapartida do “querer” da inscrição, vivi isto sim, a história do trabalho, dos horários, dos compromissos, das contas para pagar, das doenças, dos fracassos, das frustrações, o escambau!

Mesmo nessa perseguição dos meus “quereres” não precisei me encolher, mentir, nem me afastar para me deixar matar.
Na tentativa de ser boa mãe não precisei ser a mãe-mártir para despertar culpa ou causar aflição.
Para ter bons amigos não precisei fingir, vigiar nem agradar o tempo todo.
Para ser boa amante não precisei me anular, afinal carinho não é servilismo.
Para ser inteira não precisei erguer barreiras à minha volta.
Para me tornar mais humana não precisei exigir de mim o que é próprio dos deuses.

E para continuar vivendo bem, eventualmente penso e vislumbro a morte, não como um susto, mas, como um estímulo ao “querer” o melhor no fim.

A inscrição acerta quando eu penso que se não posso corrigir os males do mundo, eu posso “querer” não colaborar para que ele se torne mais violento, mais mesquinho e mais cruel.

Aí, sim, o “querer é poder”.



segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O CINE METRO


Dade Amorim





Às vezes as coisas podem acabar bem. Experiência própria. Tinha um medo supersticioso de confessar isso. Quebrei o tabu, desmanchei a crendice e abri o jogo num fim de sábado em maio. Mês dos finais felizes.
Mamãe ia comigo ao cinema. Andávamos de casa até a praça Saenz Peña, não era longe, dez a quinze minutos a pé. O hall de entrada do cine Metro era gelado, chegava um frio delicioso lá de dentro. Naquele tempo não fazia o frio que faz hoje no Rio. O lugar pedia drops de hortelã, o verde, redondo, de embalagem também verde com as pontas prateadas. Só depois apareceu o quadradinho, embrulhado um a um.
Era o bom começo. O cheiro de ambiente fechado se espalhava como uma surpresa pela sala de espera. Havia tapetes vermelhos nas escadas que levavam à sala de projeção, passadeiras presas por tubos de metal bem dourado. Era luxuosa, a sala, art-déco meio art-nouveau, balcão de balas à direita dos que entravam pela roleta geladinha. E lá dentro as poltronas macias, fria escuridão que lhes escondia a cor, talvez vermelha. Não sei bem por que a lembrança do Metro Tijuca me vem cheia de toques vermelhos, agradáveis ao tato e com esse inseparável sabor de hortelã.
O mais importante surgiria logo depois do jornal, colorido, irretocavelmente glamoroso, um mundo fácil e leve, ritmado, cintilante, fantasioso, onde tudo vinha pronto e em harmonia. E sempre, sempre dava tudo certo. A filosofia era a mesma dos números de show. Afinação, ritmo perfeito, rostos perfeitos até na possível feiúra. Tons e texturas, caras e bocas. Como igualar o brilho dos cabelos, o talhe quase etéreo, o torneado das pernas, o afago das vozes – hoje eu sei – melosas demais? Os lábios, o azul de certos olhos, os dentes? Gestos como golpes de asas, pernas sem peso.
As atrizes de musicais foram na certa as primeiras pernas a conseguir fama internacional. As primeiras estrelas mundialmente famosas. Os musicais da Metro ocuparam por muito tempo o lugar que hoje ocupa a novela das oito. Ou talvez a novela mexicana das caras de boneca-de-porcelana, dos galãs sem jaça que não poderiam ser outra coisa senão galãs, além, é claro, de cantarem tão bem. Ou então apareciam Fred Astaire, Gene Kelly, aqueles caras que dançavam com a gente.
Um mundo assumido de fantasia e ilusão sem limites. Dourado sobre azul a imaginação ouriçada, os olhos fartos de surpresas que iam do sublime ao kitsch com extremo prazer, como era bom. E tudo sempre dava certo. As imitações de gente daqueles filmes sofriam, duvidavam, mentiam, amavam e eram às vezes mais pastiches que paródias, absurdos contos simplórios que apenas abriam espaço para as doces visões e os números incríveis dos shows inocentes de Hollywood, dos números ainda ingênuos até para pintar alguma forma de malícia ou erotismo.
Alienações e críticas de pessoas tidas como doutas, quanto à intenção do que se mostrava nos musicais: propaganda imperialista, mentira, tudo mentira, futilidade e vanglória, alegria postiça e sem conteúdo. Leviandade, oportunidade aberta à moral tolerante, proclamavam os religiosos de nariz torcido. Situações tênues e irreais do roteiro, mesmo assim, ofereciam material aos reparos dos censores de plantão, naquele tempo mais numerosos e respeitados que agora. Sempre uns chatos, porém.
Mas havia uma forma artificial de perfeição naqueles espetáculos que conseguia remi-los de todas as falhas que se alegassem. Mesmo porque, ninguém que percebesse alguma coisa poderia levar a sério neles mais que o espetáculo em si, o show, a música, a dança e os cenários deslumbrantes, a técnica perfeita, os figurinos e a sincronia perfeita dos pares, os arranjos adequados ao romantismo das situações. Qualquer carrancismo ou seriedade da trama teria feito daqueles filmes dramalhões insuportáveis ou óperas falidas. Fazia parte da especificidade de sua forma mimética que fossem frágeis as cenas e as circunstâncias, de uma linha de ação própria para fazer sobressair a trilha sonora e os números de dança, e só. Apenas dava certo, tudo tinha que dar certo, porque o segredo da eficácia da obra como um todo era dar certo. Não era um folhetim, embora às vezes parecesse, assim de leve. Era talvez uma forma sutil de marketing, não agressivo como os de agora, num tempo em que a televisão apenas se tornava conhecida de uns poucos e o cinema era a grande oportunidade de deslumbramento das almas simples de moçoilas em flor.
Havia uma forma superficial de perfeição, em parte graças à técnica, que dava suporte ao vazio e ao brilho. Mas havia acima de tudo a filosofia fresca e sem dobras, a ludicidade dos ritmos sincronizados, sapateados, estilizados; das pernas gêmeas e sensíveis, belas ou miraculosas; dos corpos expressivos, quando ainda não se falava em expressão corporal; das imagens clean, coloridas, certas, bem combinadas. Um conjunto de gestos precisos, estereótipos teatrais sem culpa e até uma sensibilidade que às vezes acertava em cheio pelo encanto da representação encenada, na música perfeita para sustentar as sensações do momento e as saias que deviam esvoaçar reciprocamente, complemento visual e auditivo de paz, tramando gaiatamente um final feliz que a ninguém poderia incomodar, uma vez que o tema era sempre a harmonia. Só insensíveis não veriam isso e não se deixariam embevecer naquelas duas horas de impossibilidades deliciosas.
Dane-se a impossibilidade. Tudo pode sempre dar certo. Era essencial internalizar a mensagem tantas vezes e de tantas lindas formas repetida. Naquele tempo não seria justo não crer no impossível.