Por Dade Amorim
Eduardo Coelho (org.). Manuel Bandeira. São Paulo: Global, 2003. 226 p. (Coleção Melhores Crônicas.)
A prosa, especialmente assim, em forma de crônica, dá a conhecer uma dimensão que pertence à conformação subjetiva de seu autor e a um dia-a-dia diferente daquele que se depreende de um diário, mas fala de preocupações que vão além do trivial e têm muito a ver com o que motiva sua curiosidade, o que foi capaz de impressioná-lo ou suscitou uma emoção, um sentimento ou um desejo de conhecer.
Bandeira revela nessa coletânea o ecletismo de seus interesses e a competência para falar sobre eles. Grande contador de casos, de linguagem refinada e gostosa de ler, pode também usar expressões bem pouco ortodoxas, ou uma escrita descontraída, de linguagem coloquial. Maneja tudo com distinção e louvor, e ainda com originalidades encantadoras, quando fala sobre cidades (deliciosamente sobre o Rio), episódios da história ou política. Impregna de ternura as narrativas sobre a gente do povo, tipos de rua, as crianças, as mulheres. Fala dos amigos, da doença que o afligiu, e também de arquitetura, estilos, artes, sem nunca perder a lucidez que no entanto não torna sua escrita fria, regida pela razão, mas sustenta sua liberdade e leveza, porque é uma lucidez soprada pelo coração de poeta.
Barroco pós-moderno
Luisa Valenzuela. Romance negro com argentinos. Trad. Paloma Vidal. Rio: Rios Ambiciosos; B. Horizonte: Autêntica. 2003.

A aventura do casal de escritores argentinos vivendo em Nova York como exilados vai à contramão do cotidiano: a rotina feita em tiras, o trabalho – no caso a escrita – assimilado às engrenagens fisiológicas e os afetos como uma espécie de lubrificante que impele a ação teatral dos personagens. Não é pouca coisa, e o resultado é uma obra contemporânea em sua forma com toques de barroco. O barroco fica por conta de uma multiplicidade de tropos e metáforas que se reproduzem como em espelhos, causando um efeito final de certa simetria dentro do caos que o texto relata.
Com grande correção técnica, a autora faz valer os elementos mais importantes para a elucidação de seus pontos-chave. O pano de fundo, a Argentina da ditadura e da tortura, inspira por exemplo os tons fortes do estabelecimento de Ava Taurel, onde se oferecem serviços sadomasoquistas de todo tipo. A protagonista procura por esse lugar não como cliente, mas por uma razão que não fica explícita mas emerge das referências ao inferno em seu país de origem. É como se Roberta e Agustín, a jovem escritora e seu namorado de circunstância, buscassem alguma explicação na necessidade do sofrimento, no prazer que ele pode causar em suas diferentes modalidades. Por outro lado, o closet do apartamento dela e o brechó de Bill, seu amante negro novaiorquino, funcionam como cenários de um processo de reparação/superação.
O traço típico de Valenzuela nesse livro fica por conta do tratamento leve e muitas vezes divertido que dá a seu texto, cujo tema aponta todo o tempo para a tragédia sem nunca perder de vista as possibilidades da vida. Um processo de análise se desenrola nas entrelinhas, eros e tânatos presentes e atuantes, em linguagem bem-temperada, diálogos em alguns momentos brilhantes e ironia da melhor qualidade.