segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Crônica IV – Bandeira saboroso

Por Dade Amorim

Eduardo Coelho (org.). Manuel Bandeira. São Paulo: Global, 2003. 226 p. (Coleção Melhores Crônicas.)

Falar em Manuel Bandeira lembra logo poema, sextilhas, redondilhas, forma perfeita, verso livre, estrelas, morte, amor, sexo, amizade, pneumotórax. Quando se lêem as crônicas desse volume, entendem-se algumas coisas que ficam obscurecidas pelo encantamento dos poemas. O poema é uma manifestação, a tradução em palavras de uma epifania. Um poema é a iluminação de um momento.

A prosa, especialmente assim, em forma de crônica, dá a conhecer uma dimensão que pertence à conformação subjetiva de seu autor e a um dia-a-dia diferente daquele que se depreende de um diário, mas fala de preocupações que vão além do trivial e têm muito a ver com o que motiva sua curiosidade, o que foi capaz de impressioná-lo ou suscitou uma emoção, um sentimento ou um desejo de conhecer.

Bandeira revela nessa coletânea o ecletismo de seus interesses e a competência para falar sobre eles. Grande contador de casos, de linguagem refinada e gostosa de ler, pode também usar expressões bem pouco ortodoxas, ou uma escrita descontraída, de linguagem coloquial. Maneja tudo com distinção e louvor, e ainda com originalidades encantadoras, quando fala sobre cidades (deliciosamente sobre o Rio), episódios da história ou política. Impregna de ternura as narrativas sobre a gente do povo, tipos de rua, as crianças, as mulheres. Fala dos amigos, da doença que o afligiu, e também de arquitetura, estilos, artes, sem nunca perder a lucidez que no entanto não torna sua escrita fria, regida pela razão, mas sustenta sua liberdade e leveza, porque é uma lucidez soprada pelo coração de poeta. 


Barroco pós-moderno

Luisa Valenzuela. Romance negro com argentinos. Trad. Paloma Vidal. Rio: Rios Ambiciosos; B. Horizonte: Autêntica. 2003.

O primeiro romance da argentina Luisa Valenzuela, escrito em Paris em 1959, chamava-se Hay que sonreír. E a julgar pelo tom desse agridoce Romance negro, parece que a frase é, senão uma filosofia da escrita, ao menos um lema da autora. Porque hay que sonreír, mesmo quando se trata de variações em torno do medo e da violência. Tais assuntos, recorrentes nos autores latino-americanos (e não só entre eles), contemplam aqui também um viés subjetivo que dá grande força ao relato e marca a história com um caráter de auto-reflexão.

A aventura do casal de escritores argentinos vivendo em Nova York como exilados vai à contramão do cotidiano: a rotina feita em tiras, o trabalho – no caso a escrita – assimilado às engrenagens fisiológicas e os afetos como uma espécie de lubrificante que impele a ação teatral dos personagens. Não é pouca coisa, e o resultado é uma obra contemporânea em sua forma com toques de barroco. O barroco fica por conta de uma multiplicidade de tropos e metáforas que se reproduzem como em espelhos, causando um efeito final de certa simetria dentro do caos que o texto relata.

Com grande correção técnica, a autora faz valer os elementos mais importantes para a elucidação de seus pontos-chave. O pano de fundo, a Argentina da ditadura e da tortura, inspira por exemplo os tons fortes do estabelecimento de Ava Taurel, onde se oferecem serviços sadomasoquistas de todo tipo. A protagonista procura por esse lugar não como cliente, mas por uma razão que não fica explícita mas emerge das referências ao inferno em seu país de origem. É como se Roberta e Agustín, a jovem escritora e seu namorado de circunstância, buscassem alguma explicação na necessidade do sofrimento, no prazer que ele pode causar em suas diferentes modalidades. Por outro lado, o closet do apartamento dela e o brechó de Bill, seu amante negro novaiorquino, funcionam como cenários de um processo de reparação/superação.

O traço típico de Valenzuela nesse livro fica por conta do tratamento leve e muitas vezes divertido que dá a seu texto, cujo tema aponta todo o tempo para a tragédia sem nunca perder de vista as possibilidades da vida. Um processo de análise se desenrola nas entrelinhas, eros e tânatos presentes e atuantes, em linguagem bem-temperada, diálogos em alguns momentos brilhantes e ironia da melhor qualidade.