segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Verdade, colcha de retalhos


Zizek, Slavoj.Bem-vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas. Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
A posição dominante de Slavoj Zizek poderia ser definida pela frase da primeira orelha do volume: “...quando as escolhas são muito claras a ideologia se encontra em seu estado mais puro e as verdadeiras alternativas se tornam obscuras.” O deserto do real é uma expressão referida ao conceito lacaniano de Real, segundo o próprio Lacan muito ligada a outras duas instâncias, o Imaginário e o Simbólico: “Digo sempre a verdade. Não toda... pois, dizê-la toda, não se consegue... Dizê-la toda é impossível, materialmente... faltam as palavras. É justamente por esse impossível... que a verdade toca o Real.” J. Lacan (1973b). Uma variante desse conceito pode ser encontrada em Robert Musil: “A verdade ... só tem um traje e um caminho, e está sempre em desvantagem.”
Ainda sobre o conceito lacaniano, um comentário de J. Forbes pode ser útil: “O Real pode ser percebido como algo duro, impossível de ser captado por qualquer instrumento da realidade ou da virtualidade – palavra ou imagem – o que faz com que todos estejamos um pouco fora do caminho. Há uma pedra que nos desvia. A ninguém é dado o direito à certeza de sua percepção. Se delirar, etimologicamente, quer dizer, ‘sair do caminho’, todos deliramos.” “Somente o discurso com ausência de sentido, desencaixado, poderá abrir uma via de acesso para o Real. O Real que é totalmente fora do compreender e do saber.” (Maria Teresa Tavares de Miranda) *
A partir do 11 de setembro de 2001, Zizek desenvolve cinco ensaios sobre fatos e datas decisivas da história mais recente. O que chama a atenção, nesse livro de rara coerência e rigor em sua linguagem e nos conceitos que exibe, além da boa tradução de Paulo Cezar Castanheira, é a precisão cirúrgica com que o autor consegue posicionar seus pontos de vista. Um texto riquíssimo, apoiado nas teorias sociológico-políticas mais inovadoras de filósofos de nosso tempo, que nos levam bem mais longe que as análises da mídia, quase sempre comprometidas com facções e ideologias dominantes. Mas Zizek não se exime da crítica, mesmo no caso de pensadores que lhe servem de apoio. O que primeiro nos chama a atenção, além da lucidez das referências e da agudeza da visão de mundo de Zizek, é a agilidade com que ele passa de um a outro ponto de vista e a imparcialidade quase inacreditável com que os expõe.
Um bom prefácio e uma introdução ilustrativa nos preparam para os textos principais, que realizam na medida do possível as expectativas propostas. Logo no primeiro ensaio, “Paixões do Real, paixões do semblante”, diz o autor: “O momento último e definidor do século XX foi a experiência direta do Real como oposição à realidade social diária – o Real em sua violência como o preço a ser pago pela retirada das camadas enganadoras da realidade.” Por essa via se “explica” o que nos parecem as atrocidadres, os absurdos e os destemperos sempre presentes à história, tal como a conhecemos, com foco em nosso dia-a-dia. É a paixão pelo Real e seus efeitos, de que fala Alain Badiou, como traço característico do século XX.
Tal perspectiva leva a uma atitude bastante lógica e inusitada, ao menos segundo a maioria dos pontos de vista conhecidos: à p.66, Zizek propõe que, no caso do ataque às torres gêmeas do World Trade Center, não se aceite a oposição entre as duas partes envolvidas, que levaria como sempre a uma tomada de posição sectária, mas que se adotem simultaneamente as duas posições, porque “cada uma é tendenciosa e falsa”. A questão, diz ele ainda, é que “os dois lados não são realmente opostos, eles pertencem ao mesmo campo”, e que “a opção entre Bush e Bin Laden não é a nossa escolha: os dois são ‘Eles’ contra Nós.”
A questão principal, como desde o começo do livro se coloca, é que nossa busca da felicidade – hoje em dia considerada obrigatória por todos os autores de autoajuda e conselheiros de ocasião – é falseada por fatores externos, que nos desviam do desejo, considerado por Lacan o único fundamento válido para esse fim, que no entanto não coincide com os princípios que nos são impostos nem se submete a eles. Essa questão abrange uma variedade inusitada de temas de nosso tempo, e por conta dela quase todos os acontecimentos e personagens dão o que falar, desde governantes antagonistas até ficções, como os filmes sobre o velho Oeste americano. Ou como Shrek, considerado um personagem falsamente subversivo, que está longe de ser o “lugar de resistência” que se propõe, mas conta de novo “a mesma velha história”. Todos eles, personagens verdadeiros ou de histórias de ficção, chegam a nosso conhecimento permeados de ideologias dominantes em conflito.
Outro conceito muito utilizado há algum tempo, também esse derivado da teoria psicanalítica, o grande Outro, de que se valeriam os interessados em angariar adesão a suas ideias e objetivos (muitas vezes nada éticos), é hoje quase sempre coberto pelo “Outro da Lei”, “ficção legal de legitimidade”, com o objetivo de anular “esta última reserva dos legalistas nazistas” pela “regulação pós-política da vida do Homo sacer, ... que apesar de um ser humano vivo, não é parte da comunidade política”, de acordo com o  conceito de Giorgio Agamben.
Por outro lado, o conceito de terror, muito útil ao discurso ideológico, foi “gradualmente elevado ao equivalente universal oculto de todos os males sociais” – outro modo recorrente de falsear a realidade e fazer cócegas no Real.

*Texto e citações por Maria Teresa Tavares de Miranda, in
http://www.psicanaliselacaniana.com/estudos/muxarabi-teresa-miranda.html