sábado, 7 de abril de 2012

MILLÔR, O FIM DE UM ESCRITOR QUE TEVE A CORAGEM DE ASSUMIR QUE NÃO TINHA ESTILO NENHUM

Millôr Fernandes


Por Claudia Borio (*)

Millôr Fernandes nasceu no Rio de Janeiro, no bairro do Méier, em 1923, filho de espanhóis cujo sobrenome era Fernandez. Ele mesmo contou que começou a trabalhar com 12 anos de idade e que a sua primeira frase publicada foi “meu bem era o nome dele enquanto solteiro”. 
Ele também contou que a certidão de nascimento era escrita com uma caligrafia a pena, extremamente bem desenhada, em que o traço do “T” estava destacado da letra e que um belo dia, precisando tirar uma cópia atualizada, ele leu ali “Millôr” ao invés de “Milton” e assim nunca mais se chamou Milton e sim Millôr, o que já denota, desde cedo, esse caráter engraçado e piadista, sem deixar de ser original, do autor que já nasceu com o pseudônimo pronto.


Estudou no colégio Enes de Souza, aquele mesmo descrito por Pedro Nava, sem saber que era um abolicionista, e depois no Liceu de Artes e Ofícios. Perdeu os pais muito cedo, o pai logo após nascer e a mãe mais tarde, passando por uma fase duríssima, “dickensiana”, em que ele morava com os tios e o bife ia para os primos. 


Foi nessa fase que ingressou na sua vida a sua avó, Dona Concheta de Nápoles, que ele descreveu várias vezes, tinha setenta e oito anos, quarenta e dois netos e bisnetos, e se apaixonou por ele, e por isso ele sempre dizia ter uma relação extraordinária de carinho com as mulheres. De fato, quando ele mencionava várias pessoas numa só frase, se houvesse mais mulheres do que homens, por exemplo duas mulheres e um homem, ele dizia “elas”.


Uma frase sua ficou famosa” o melhor movimento feminino é o dos quadris’, frase esta que ficou odiada pelas feministas brasileiras. No entanto, Millôr foi homem apaixonado e apaixonante, com muitas boas amigas fiéis até a sua morte (como Cora Rónai).



Em entrevista, ele declarou que as mulheres se destacavam por ter uma capacidade de sobrevivência maior que dos homens. Que se caísse uma bomba atômica as mulheres definitivamente saberiam como agir . Mesmo assim, ele achava que essas mulheres não seriam as feministas, apenas as inteligentes.


Para muitos, ele era o melhor humorista do Brasil, uma inteligência fulgurante, famoso como frasista e filósofo que ao mesmo tempo que escrevia, sabia desenhar. 


Além de escrever para teatro e cinema, passou mais de 50 anos escrevendo uma crônica diária e foi um artista plástico totalmente original. Usou vários pseudônimos, como Vão Gôgo, Volksmillor e Milton à Milanesa.
Dizia que o humor era coisa de família, “glandular” pois ele vinha de família espanhola, onde todos eram briguentos e adoravam discutir, mas também eram engraçados, e que era primo irmão do palhaço  Carequinha, que tinha outras pessoas de circo na família. 


Seu irmão, o famoso jornalista Hélio Fernandes, recordou que eles brigavam muito quando crianças, brigavam, brigavam, de repente paravam e um dizia: Você fica no meu lugar e eu no teu, e aí continuavam.


Orgulhava-se de ser um escritor sem estilo e especializado em coisa nenhuma, dizia-se “livre como um táxi”. Chamava sua vida de guri de bairro a “Universidade Livre do Méier”, onde aprendeu toda a malandragem necessária para escrever e sobreviver à ditadura e continuar muitos anos depois.


Brincava constantemente com as palavras, que rebuscava em dicionários e enciclopédias, e chegou a sofrer um processo por um político que ele acusou de “idioletia”, que não é o mesmo que “idiotia” (o processo foi arquivado), e até Guimarães Rosa parodiou numa memorável versão (ou riversão) da história do Chapeuzinho Vermelho.


Apesar de todo o senso de humor, achava que o ser humano era uma experiência que não deu certo.



Joãozinho: Obra de humor negro escrito por Millôr em 1952.
Desenhado por Péricles Maranhão ("O Amigo da Onça")





Em 1955, ele começou a fazer cobertura jornalística de campanha eleitoral, quando conheceu Jânio Quadros (que ele achou engraçado, imediatamente). E por um acaso fulgurante do destino, ganhou o primeiro lugar num concurso de desenhos em Buenos Aires, junto com Saul Steinberg, o conhecido desenhista americano ( que ilustrou durante mais de 20 anos a revista New Yorker)


Em 1956, foi fazer cobertura do Festival de Cannes e do casamento de Grace Kelly. Dizia que “este acontecimento até hoje rende mentiras por parte de muitos jornalistas. Guardo as minhas para momentos insípidos de conversação.”


Em seguida, teve também uma exposição de desenhos no Museu de Arte Moderna, naquela época uma sala em baixo do Ministério da Educação, como melhor cenógrafo do ano. Ele dizia nunca ter entendido o motivo de receber essa homenagem.


Em 1958, afirmava ele, seu grupo de praia inventou o frescobol em Ipanema. Que antes se jogava a “pelota basca”, sem muito sucesso, mas ele difundiu o frescobol e se auto-proclamou campeão do Posto 9. Dizia que era o melhor esporte do mundo, pois ninguém precisava ganhar... 


Em 1960, estreou sua peça “Um elefante no Caos”, com pesada intervenção da censura. Em 1963, primeiro conflito por questões religiosas contra a ética tradicional dos Diários Associados. Millôr, ateu desde criancinha, declarou: “me sinto como um navio abandonando os ratos”.


Em 1964, tentou lançar uma revista própria, ’O PIF-PAF’, quinzenal que, em 1979, o serviço de informações do exército consideraria oficialmente como o início da imprensa alternativa no Brasil. “Ainda bem, porque fecharam o jornal no oitavo número e eu fiquei devendo 21.000 cruzeiros. Meu valor na praça, então, era mais ou menos 500 cruzeiros mensais.”


Em 1963 ele trabalhava na Revista O Cruzeiro, publicando uma seção onde repetiu o nome de sua tentativa de revista, chamando a seção assim de Pif Paf. 


A pedidos da revista, fez uma série de desenhos narrando a verdadeira história de Adão e Eva, e tirando uma gozação com Deus, acabou demitido, tendo que mover um processo contra a revista, que ganhou. 
Ele começara como “factótum”, uma espécie de Office-boy em 1938, e a primeira seção que escreveu, de última hora, batizou de Post-Scriptum. 


Millôr acabou trabalhando em várias seções dO Cruzeiro, revitalizando a revista e fazendo com que sua tiragem, de 11mil, passasse para 760 mil exemplares semanais após a guerra, uma tiragem que só a Veja conseguiria bater cinco décadas depois. Com inventividade desconcertante, nessa época ele mesmo já se denominava de “o maior leigo do país”.


Depois de todos aqueles anos em O Cruzeiro, Millôr passou 14 em Veja, 6 no Pasquim, 10 na IstoÉ, mais ou menos isso no Jornal do Brasil (em duas fases) e algum tempo na Tribuna da Imprensa, Correio da Manhã, no Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo.
Em meio a esse período, tomou conta quase sozinho do Pasquim, o famoso jornal que combatia a ditadura nos anos 60-70, escrevendo as colunas dos amigos que se achavam foragidos ou presos, mantendo o estilo de cada um e não deixando o jornal afundar.


Entre seus defeitos, contava-se a língua afiada (jurava que 95% da humanidade era absolutamente idiota e que os outros 5% eram discutíveis) e a vaidade exacerbada. Certa vez, o humorista Jaguar disse que “Millôr Fernandes não suporta a idéia de que exista alguém melhor do que ele”.


Brigou também com Chico Buarque, dizendo que “os defeitos de Chico Buarque se chocaram comigo”, e proferiu a seguinte frase:


"Eu desconfio de todo idealista que lucra com seu ideal."


Entrou em polêmica também com Daniel Filho , ator e diretor de cinema e televisão ligado à Rede Globo, dizendo que ele era um “prepotente e exibicionista” e acrescentou: “Nem veado é”!


Mas por outro lado não tinha medo de dizer o que pensava, como quando disse que Hitler também veio de baixo: “Era um filho da puta no meio daquela Áustria cheia de milionários”. 
Eternamente cético, combateu a ditadura e depois a corrupção, mesmo achando que para esta não havia cura, que os corruptos eram como os cupins, se recolhendo por um tempo e depois voltando, que para isso o Brasil devia ter o “voto contra” para que as pessoas pudessem simplesmente votar contra algumas pessoas.


Por outro lado, tendo traduzido Shakespeare, estudado e lido durante toda a sua vida, revelava surpreendente lucidez e humildade quando dizia que “cultura é entender a extensão da própria ignorância”, e aproveitava para dizer que “Lula não tem a noção da própria ignorância”. Indignado com o escândalo do mensalão, fez até “uns versinhos. Chama-se “Poema em ão”. É assim: Se ele sabe do mensalão/é charlatão./Se ele não sabe/é um boçalão.”.


Um cético em política, achava que o socialismo, em teoria, era maravilhoso. Como o cristianismo. “Mas, na minha vida toda, eu nunca encontrei um cristão e um comunista de verdade. Sou um humanista ateu. No entanto, sou mais comunista e mais cristão que muita gente. Eu me responsabilizo pelas empregadas que me atendem. Não vou abandoná-las jamais”....


Millôr adoeceu há alguns anos e ficou discretamente em casa, sempre avesso a qualquer publicidade, onde finalmente faleceu, neste ano. 
Talvez achasse graça de saber que, em uma página de jornal publicada na internet, noticiando a sua morte, no rodapé,  uma empresa de crematório aproveitou para fazer sua propaganda, oferecendo “linda cerimônia ecumênica”.


(*) Claudia Borio é escritora em Curitiba e tenta, com muita força, não ter estilo nenhum também.