segunda-feira, 23 de abril de 2012

Sobre 'Neve', de Pamuk


 
Por  Dade Amorim





Orhan Pamuk. Neve. Trad. Luciano Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Um livro que fala de gente, poesia e do povo que passa por uma crise de identidade, traduzida em um golpe de Estado contra o fanatismo religioso. Neve, de um conteúdo político acentuado, fala igualmente de arte e valores estéticos. Uma leitura agradável, fluida, que retrata um povo e seu surpreendente modo de pensar. É revelador, no sentido de que nos põe em contato direto com essa mentalidade tão diversa da ocidental. Finda a leitura, percebemos o quanto pudemos aprender sobre os orientais e entender as crises que os jornais noticiam quase todos os dias. Ao mesmo tempo, não escapa a esse autor surpreendente a delicadeza dos sentimentos, os choques entre pessoas que conservam a crença em Alá e no Corão e os que já não creem; o medo da violência de que o Estado lança mão para impor o laicismo, responsável pela morte de inúmeros estudantes de uma escola religiosa e de cidadãos que conservam sua fé e precisam muitas vezes permanecer ocultos para escapar à morte.
Talvez Neve seja o modo pelo qual o autor tenta levar os turcos a refletir sobre sua identidade. Os conflitos entre os de sua própria cultura, a busca de uma compreensão mais elaborada sobre a vida na Europa e no mundo ocidental, mostram a necessidade de uma abertura maior entre uns e outros. É necessário, antes de tudo, amenizar a tendência ao fanatismo, e sem dúvida Pamuk visou esse objetivo, escrevendo Neve. Porém há mais do que isso no livro admirável que ele nos entregou. Nas 483 páginas de sua obra, exalta a poesia de diversas maneiras, em especial quando fala do protagonista, o poeta Ka, há alguns anos morador da cidade de Frankfurt, na Alemanha, que volta à Turquia, à cidade de Kars, uma das mais pobres do país, que naquele momento sofre os efeitos da violência policial e de tempestades de neve contínuas.  
A neve que dá nome ao livro, ao mesmo tempo flagelo e inspiração para Ka, aparece destacada em seus flocos hexagonais, “interminável repetição de um milagre banal”. Ka vê uma semelhança entre cada pessoa e esses flocos, pela singularidade de cada um deles e seu mistério. Ka é um jornalista exilado e, como poeta, um estranho dentro de uma sociedade que se confunde pelas verdades que estão mudando, pela perda da suposta perfeição de um antigo e entranhado ideal que vai perdendo força à medida que o tempo passa e mais pessoas o veem em outra dimensão. As reflexões e as diferenças constroem esse livro, ao lado da existência humana, dos seres que constituem o eu e o outro. São três dias que Ka permanece em Kars, tempo suficiente para que ele veja na neve constante a inspiração – “o silêncio da neve” – e um cenário que, de alguma forma, o ajudará a suportar a visão do diretor da escola sendo assassinado diante de seus olhos e o golpe militar acabando com jovens. Mais tarde ele vai saber que seu amigo adolescente Necip fora também morto naquele dia.
Entre a ficção e a realidade, a narrativa nos prende até o final, quando o próprio autor assume sua participação na história, deixando ao leitor a dúvida sobre se fora ele mesmo a representar o papel do poeta em Kars, cidade que espelha a Turquia e sua complexidade histórica e ideológica, pela mistura de gente tão diversa quanto curdos, islamitas, fundamentalistas, separatistas, azerbaijanos, secularistas e socialistas, militares, ateus e todos que formam a difícil mistura cultural, por conta da qual acontecem na cidade o assassinato do prefeito, do diretor da escola religiosa e os suicídios de moças proibidas de usar o manto que, de acordo com a religião dominante,deve cobrir a cabeça de cada mulher.
A (talvez) obra-prima de Pamuk mostra que entre o Oriente e o Ocidente o conflito é inevitável. Mas também existe, a par desse conflito, um desejo de aceitação da mentalidade ocidental, por conta do que ela tem de mais moderna, nada presa a tradições que impeçam o progresso. Orhan deixa bem patentes  ressentimento, ódio e  fanatismo, quando Azul, terrorista islâmico que ainda mantém seus valores religiosos, declara que se recusa a ser como um europeu: “não vou imitá-los feito um macaco”. O conflito vai do extremismo a uma situação de perda da identidade e chega a ser humilhante ter que abandonar as tradições e ver a sociedade tão dividida e, em muitos casos, perdendo suas características próprias.
Nunca me arrependi de ler um livro de Orhan Pamuk, mas nesse caso encontrei tanta beleza a par da triste situação daquele povo; aprendi tantas coisas, percebi uma riqueza fora do comum no protagonista Ka e, acima de tudo, tive uma experiência rara ante a sensibilidade e a competência com que o autor chega às vezes a surpreender. E gostaria que ele fosse brasileiro e pudesse explicar nosso país como conseguiu explicar a Turquia em Neve.