segunda-feira, 9 de abril de 2012

UMA VELHA HISTÓRIA SEMPRE ATUAL

Por Dade Amorim




No livro de contos Bestiário, de Júlio Cortázar, uma narrativa que, como quase todas as que ele deixou, é de certo modo um signo de sutilezas e, bem analisada, uma análise em profundidade da vida real. A casa em que os dois irmãos vivem é invadida por personagens desconhecidos. Mas o que ressalta nessa estranha história não é propriamente a invasão inexplicada, mas um lado bem conhecido da realidade.
No conto “Casa Tomada”, há, antes de tudo, um predomínio sutil do masculino sobre o feminino, encoberto pelo narrador com delicadeza, fazendo crer num bem-estar perene que no entanto não resiste a uma análise mais acurada: é sempre ele quem decide a ordem dos trabalhos, as atribuições de cada um; é ele quem vai ao centro para comprar as lãs da irmã, que "tinha confiança no meu gosto, apreciava as cores".
É o irmão ainda quem ouve primeiro as vozes e os ruídos do invasor dentro da casa e dele são sempre as atitudes e ações definitivas, como a escolha do dia das compras, as decisões na hora da fuga instantânea e até o calar-se sobre as preocupações e tristezas para não afligir o elemento feminino, considerado frágil e incapaz de ir mais longe que os limites da própria casa e do trabalho com as agulhas de tricô. Sem falar na imposição de um silêncio, que é como uma névoa envolvendo a vida dos dois irmãos de “Casa tomada”.
Irene, a irmã, concorda com todos os atos do irmão, sem protestos nem discussões, sem ao menos buscar uma confirmação em casos tão graves como a perda da casa, e não parece mesmo ter vontade própria: “Irene era uma moça nascida para não fazer mal a ninguém. (...) Não sei por que tricotava tanto. (...) Pergunto-me o que teria feito Irene sem tricotar.”
 Tentando justificar o trabalho constante da irmã com lãs e agulhas, e livrá-la – por gentileza ou ironia – da pecha de preguiçosa levantada contra outras mulheres do mesmo tipo, o narrador-protagonista se contradiz, contando que Irene só produz coisas necessárias: algumas páginas adiante, falará da “gaveta da cômoda de alcanfor cheia de écharpes brancas, verdes, lilases (...) com naftalina, empilhadas como em uma mercearia; não tive coragem de perguntar a Irene o que pensava fazer com elas.”
Essa benevolência excessiva torna suspeita a aparente espontaneidade; não condiz com as angústias entrevistas na vida reclusa e voluntariamente solitária de Irene, cuja voz não se faz ouvir e na qual se apreende por indução um medo difuso e silenciado.
A invasão, por sua vez, se concretiza sem aviso, o que faz supor a subtração de dados importantes ao esclarecimento do enigma, denunciado pelo contraste entre o tom ambiguamente gentil adotado no texto e a realidade brutal que se relata.
Interdição e dominação compõem juntas uma simbiose necessária: uma não sobrevive sem a outra. Por isso pode concluir-se que, se existe dominação por parte do narrador de “Casa tomada” – já agora considerado suspeito e mentiroso – também ele estaria sujeito a algum tipo de interdição. Considerando a extraordinária passividade de sua irmã e o domínio com que ele dirige a narrativa, permitindo a ela uma presença decorativa de falas meramente superficiais ("— Este ponto que inventei não é um trevo?") ou interrompendo as falas com "voz de papagaio ou de estátua" dos sonhos dela, que tanto o incomodam (porque remotamente poderiam traduzir alguma verdade guardada ou interditada), crescem os indícios de que o elemento masculino, aparentemente amigável e modesto ("eu não tenho importância"), desempenha uma função subreptícia de dominador. E mais: a interdição estaria internalizada, uma vez que não chega a ser sequer mencionada, e são os fatos que nos fornecem indícios dela.

*Este texto foi extraído de O enigma como desafio (1990), trabalho desenvolvido durante o curso de Mestrado em Literatura Brasileira do Departamento de Literatura Brasileira da UERJ.