domingo, 22 de abril de 2012

SENHORA DO TEMPO: TIA RUTH BORIO, MULHER DAS MIL HABILIDADES

Por Claudia Lopes Borio
Tia Ruth 


Muito criança ainda, eu adorava visitar a casa de Tia Ruth e de suas três filhas. Essa tia casou-se com um primo do meu pai, e todos nós nos apegamos muito a ela. Todos a adoravam e eu e meu irmão desenvolvemos uma amizade imensa com as filhas dela, Sandra, Sônia e Tânia.

A casa da Tia Ruth guardava um encanto maravilhoso para mim, pois ela, após se separar do marido, criou as três filhas fabricando bichos de feltro. Vou contar de acordo com minhas recordações de criança, que me perdoem os parentes se eu falar alguma coisa que não era bem assim. O fato é que, numa época em que os bichos de pelúcia ainda eram coisa rara, importada, ela fazia bichos de todos os formatos e tipos, com feltro colorido, com uma habilidade fabulosa. E mais, ela não copiava de ninguém, inventava os próprios modelos. Eram incríveis, lindos. Corujas, galinhas, lagartos, caranguejos, leões, sapos, cobras, bonecas, tudo o que você pudesse imaginar, ela fazia.



Eu ganhei um leão, que era uma grande almofada, um lindo desenho estilizado, muito simples, que eu adorava. Ficava lendo no meu quarto apoiada no meu leão, até que ele furou.







Tia Ruth
Fazia umas latas de lixo lindas, com velhas embalagens de papelão revestidas de feltro preto e uma grande flor de cada lado, eu tive uma por anos. Fazia também uns painéis de saco de sisal, para pendurar na parede e colocar lápis, canetas, tudo com uma porção de personagens, homenzinhos que subiam por toda a parte e entravam pelas aberturas, eram divertidíssimos para uma criança.

Um belo dia ela alugou uma casa em Pontal do Sul para passar uma temporada de praia com as filhas e a primeira neta, e lá fui eu, convidada, para ir junto com as primas.
Lá chegando, ela logo me deu um vestido longo de malha branca com bolinhas, supremamente simples, um “longuinho”, como ela falava, com uma faixa para amarrar nos cabelos. Isso ela fazia assim, com a maior facilidade, em uns 15 minutos de costura.


Lembro-me dela espetando pedaços de abacaxi no palito e colocando no congelador para a gente comer, fritando frango com Neston para a gente levar em um piquenique e ensinando quem quisesse a sambar. Pois ela estava sempre rindo, bem humorada, cantando e dançando como uma mocinha.
Era uma delícia de pessoa.
Quando a sua primeira neta, a Brisa, fez aniversário de um ano, ela pegou uns toquinhos redondos de madeira serrada e se inspirou: fez umas cabeças de bola de isopor com grandes olhos e antenas que se equilibravam sobre umas molinhas: eram os bichos da madeira.

Fez também formigas, de feltro preto, com seus nenêzinhos no colo – sabe aqueles ovinhos brancos que aparecem quando a gente dá uma pazada num formigueiro? Era assim, os nenéns das formigas.

Foi a primeira vez que eu vi uma mesa de aniversário toda enfeitada, com insetos maravilhosos de contos de fadas. Não preciso dizer que, uns trinta anos depois, ainda tenho a formiga e seu bebê guardados em algum lugar.

Ela contava que teve uma infância muito movimentada e endiabrada, com muitos primos, que tinham tanta vontade de ter uma bicicleta que construíram uma de madeira, com rodas de pau, que andava de verdade, mas só na descida. E que um vizinho uma vez furou a bola com que brincavam, e à noite eles roubaram tijolos e massa de uma construção e fizeram uma parede bem em frente à porta do mal humorado, que ao abrir de manhã levou um grande susto, achando-se emparedado.
Claudia Lopes Borio
Mais tarde ela começou também a comprar cabecinhas de boneca de porcelana, com mãos e pés, que ela pintava caprichosamente e construía roupas elaboradas, de cetim, maravilhosas, fazendo os personagens da comédia del’arte.

Eram disputados pelos amigos e parentes, e alguns ela vendia em butiques que nem acreditavam na qualidade do seu artesanato.
Tinham braços e pernas articulados, feitos de arame grosso, e paravam em qualquer posição – sentados, com as pernas cruzadas, enfim, uma perfeição chinesa.
Um dia saiu a passear e entrou em uma igreja, não era muito religiosa, não sei bem o que foi fazer ali. Aí encontrou o padre, chamou-o e disse: - Escute, estes santos estão todos muito feios, o senhor não quer que eu borde umas roupas para eles? - Olha, querer eu até queria, mas não tenho dinheiro para pagar, disse o padre.
Foi assim que a Nossa Senhora dessa igreja ganhou um dos mantos mais festivos e fabulosos que já se viu na face da Terra.

Fazia também incríveis vestidos de festa, todos rebordados, geralmente modelos elegantes em veludo, com o peito ou a cintura todos bordados em pedrarias minúsculas.
Lembro-me do meu irmão indo a um baile junto com a prima Tânia: ela chegou com um vestido verde musgo, fechado até o pescoço, com um losango de pedrarias bordadas sobre o peito, aquilo era tão elegante quanto um modelo Cardin.
Ah, e para passar o tempo, ela vestia Barbies com as roupas de personagens de contos de fadas, como a Bela Adormecida, a Chapeuzinho Vermelho ou uma passista de escola de samba.

Criou assim um verdadeiro Museu da Boneca. Enquanto isso, bordava paninhos rendados que serviam para colocar sobre a jarra de água, impedindo que caísse poeira ou algum inseto entrasse, tudo com pedrarias de miçanga, folhas verdes, frutinhas, flores, em incríveis detalhes minúsculos. Inventou também umas bolsas bordadas com contas de madeira, fazendo desenhos geométricos, que algumas pessoas mandaram emoldurar, pois eram perfeitas mandalas.
E isso tudo ela fazia a olho, sem riscar antes, só compondo o desenho na hora em que fazia.

    Tia Ruth, velhinha 

Um belo dia, depois de adulta, achei meu leão furado e roído de traças e pedi a ela para restaurá-lo. Ela o pegou e acabou fazendo outro, inteiramente novo, com a juba mais escura e a mesma carinha de sono que eu adorava.
 Sempre que a gente chegava lá na casa dela, mesmo bem velhinha e já bastante doente, ela estava bordando, pintando ou cortando alguma coisa, e tinha os materiais todos perfeitamente arrumados em caixas, em seus armários, enquanto assistia televisão – adorava esportes.

Como se tudo isso não bastasse, era uma cozinheira de forno e fogão e fazia algumas iguarias simples e famosas, como as beringelas com passas, o mel com nozes, ou o gelado de côco queimado, enfim, sempre havia uma coisa boa em sua casa. Bem no final, já muito doente, ela ainda brincou no hospital, dizendo ao médico que “esse ano o Bernardinho não vai me escalar”, sem nunca perder o bom humor.

Deixou três filhas, quatro netos (Brisa, Mel, Flávia e Rogério) e duas bisnetas (Isadora e Ária), que jamais vão esquecer dessa pessoa de contos de fadas que foi a minha tia Ruth.

Ontem a sua filha Sônia me encontrou, e deu-me algumas lembranças dela: um vestido para mim e outro para minha filha, e o presente que mais me emocionou, um papel “tigre” dobrado, fechado com um alfinete, que continha o molde de todas as peças para montar um bicho de feltro, escrito com letra caprichosa bem em cima: LEÃO.

 In Memoriam Ruth Tavares Borio
 Por Claudia Lopes Borio
Abril / 2012