domingo, 23 de outubro de 2011

SENHORA DO TEMPO. A MÍSTICA DO TRABALHO

Por Vera Guimarães

Imagem: deiatricotando.blogspot.com
Amiga me conta que há uns 10 dias não tem sido produtiva, que tem ficado no ócio e que tem achado isso muito bom. Quer dizer, apesar de sempre ter trabalhado muito durante toda a vida, de estar com os filhos criados, ainda assim o ficar sem fazer nada aparece como algo não muito natural, tanto que mereceu registro.

Meu irmão fazendeiro foi derrubado por uma vaca, trincou osso do joelho, foi levado a contragosto ao hospital, disseram-lhe que ficasse de repouso, mas ele fugiu das recomendações e com dois dias já estava no curral.


Ao ficar viúva, uma de minhas irmãs me confidenciou que seu sonho agora é viver num hotel e usar um tanto do seu tempo em atividades realmente prazerosas para ela, tais como conviver mais com amigas, dedicar-se a passeios, rezas, TV e leituras. Passado quase um ano, ela continua envolvida com a lida doméstica, sem se libertar da vida antiga, apesar de não ter quem, a rigor, dependa dela.  




Certa época, entrou para a organização onde eu trabalhava uma turma nova, moderna, disposta, realmente boa de serviço. Uma dessas pessoas, além de ser capaz, fazia mesmo questão de se mostrar sempre ocupada, estudiosa e apressada. Um dia nos encontramos no clube, ela na sua espreguiçadeira. Muito gentil, me chamou para me juntar a ela e explicou que gostava de aproveitar aquelas horas para ler suas revistas técnicas especializadas. Ao abrir espaço para mim, caíram da mesinha várias das revistas. Até hoje, aqui em casa, CARAS é chamada de revista técnica especializada.


São inúmeros os casos de pessoas que não admitem ficar sem trabalhar, que não se permitem papear à toa com amigos, que não conseguem transferir tarefas para outrem, que não dão conta de simplificar a rotina, que não param nem para cuidar da saúde,  que acham desdouro o lazer.
Não me refiro a quem de fato executa seu trabalho com leveza, com prazer. São incontáveis também os casos de pessoas que seguem assim felizes até o fim da vida, seja no que sempre fizeram ou em algo novo. Também não me refiro às que são obrigadas pelas circunstâncias a assumir certos papeis.


Eu me refiro àquelas pessoas que simplesmente não conseguem deixar de executar tarefas desagradáveis e até certo ponto desnecessárias, àquelas pessoas que não reconhecem a praticidade de alguns aspectos da vida moderna, àquelas que, mesmo podendo, não sabem substituir algo complicado por algo já pronto, àquelas que supõem que certos serviços sejam sua obrigação, seja por culpa, hábito arraigado, senso exagerado de dever ou perfeccionismo.


A Expulsão do Paraíso,
Charles Joseph Natoire,
c. 1770 - fflch.usp.br
Como se construiu esta mística do trabalho? Primeiro, em lições da Bíblia, guia e inspiração de toda a civilização ocidental, que, ainda no Genesis, nos conta que, como castigo pela desobediência, Adão e Eva, ao serem expulsos do Paraíso, perderam a inocência, a imortalidade e o direito ao ócio: “Comereis o pão com o suor do vosso rosto.”
Ao longo da história, as religiões e vários sistemas filosóficos e de governo reforçaram a ideia do trabalho não apenas como necessidade, mas também como valor moral. A fábula A Cigarra e a Formiga e a historinha A Galinha Ruiva são exemplos dessa pedagogia.
                                                                                 
Na família de minha mãe, alguns episódios com certeza ajudaram a formar trabalhadores compulsivos. Por exemplo, em festas, almoços ou jantares em casa, nem bem acabada a comemoração, lá estava uma prima encarando o monstro da pia, lavando aquele mundo de louça. Quando alguém comentou: “Você gosta de lavar vasilha, né?”, ela respondeu de voleio: “Eu, não! Eu não gosto é de ver vasilha suja!”


Um dos meus tios, já passado dos 80 anos, portanto com mais de setenta anos de trabalho duro na roça, estava descansando depois do almoço, quando chegaram visitas. O quarto dele dava diretamente para a sala onde se encontravam essas pessoas. Apertado por ter sido pego no ócio, ele não relutou: pulou a janela, deu volta na casa, e apareceu na sala como se estivesse vindo de alguma ocupação no terreiro ou no curral.


Ao fim deste relato, constato que, como quase tudo na vida, aqui também é tudo muito relativo. Se, por um lado, comparada a pessoas operosas e diligentes, eu me considero folgada e preguiçosa, por outro lado, frente a outras pessoas, sou eu a operosa e diligente.