segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O ENCONTRO QUE NÃO MARQUEI

Por Dade Amorim



Ia começar a faculdade, e o centro da cidade ainda era cheio de segredos, quando descobri o primeiro sebo, na rua de São José. Conhecia Monteiro Lobato e alguns autores, principalmente os da estante de meu pai, uma verdadeira mina. O sebo era uma descoberta e tanto. Fiquei meio perdida e um pouco delirante, conferindo os títulos, já pensando em levar uma pilha deles, quando vi o nome de Clarice Lispector numa lombada um pouquinho mais larga que a da maioria dos livros em volta. Tinha ouvido falar dela, que já fazia sucesso, e comecei a folhear o livro – O Lustre – e a lê-lo ali mesmo.
Nem é o melhor livro de Clarice, hoje sei. Mas era o primeiro dela com que tinha contato, e não conseguia parar de ler. Na condução, em casa, até altas horas, na manhã seguinte e em cada instante entre uma e outra atividade. Quase de um fôlego, até a página 341, a última. Depois vieram os outros, tudo que ela deixou escrito e nunca me cansei de ler.
Anos depois, com a cabeça mais fria e mais informação sobre literatura, acho que o que muitos consideram magia no texto de Clarice é simplesmente poesia. A força dessa primeira experiência deixou isso bem claro: ela escreveu poesia durante toda sua vida. Não uma poesia em forma de poemas convencionais, mas em estado puro, quase bruto, que flui de seus textos espontaneamente e foi sua grande motivação. Um certo aturdimento, o inesperado, as epifanias presentes em seus contos e romances, a escolha dos termos, tudo obedece a um impulso que se identifica com o que para mim é o melhor da poesia. Um olhar que não se deixa limitar ou contaminar por convenções ou conveniências, mas vai às fontes, seja lá o que sejam as fontes do que se percebe – e que ninguém descobriu ainda. Um raio-X capaz de ver as pessoas na íntegra, sem se deter na aparência, e chegar aonde o senso comum nem desconfia: a inocência, o primitivo de cada um de nós, o núcleo onde a pessoa se resolve. Clarice via o que a maioria apenas obscuramente pode intuir. 

***

Espero que o Natal tenha sido muito bom, e que o novo ano prometa ser melhor ainda.