Escrevo no Mínimos Óbvios desde fevereiro de 2007. É um espaço onde coloco os textos que escrevo à partir dos filmes que assisto. Em alguns casos a relação com a obra é de fácil identificação. Em outros é mais pessoal e mais subjetivo e já recebi advertências de alguns leitores no estilo 'mas onde está o filme tal dentro do teu texto'? Na verdade não parto dos filmes. Mas do que me interessa dentro do discurso, das ações, do que não é dito pelos personagens. O subtexto, as entrelinhas sempre me fascinaram. Hoje faço um resgate simbólico e lembro do primeiro texto que publiquei no blog. Era sobre o filme do Karim Ainouz, O Céu de Suely, que eu gosto muito. E ele fala justamente sobre esses mínimos que nos definem, que fazem a diferença nos dias, que muitas vezes deveriam ser obrigatórios por serem óbvios e quando ausentes, podem causar um efeito que descolore. Aquele 'bom dia', 'obrigado', 'por favor', 'com licença', ' me perdoe' que fariam a diferença caso nos percebêssemos com um pouco mais de atenção e carinho.
***
Parado. Na plataforma. Esperando o trem. Equilibrava-se entre a mochila,
duas malas e uma garrafa de água, faz muito calor e é verão. Parado,
buscava o equilíbrio entre os objetos. Buscava o equilíbrio, como
qualquer um de nós. E driblava o excesso e a agitação da cidade, sabe-se
lá com que humor, com quais sonhos. A pele branca queimada de sol – às
vezes o céu abre e não é tão azul, mas ainda faz sol e é verão. Na nuca
uma tatuagem pequena, discreta, algum símbolo que a minha ignorância não
soube identificar. Aquela simplicidade masculina arrebatadora de jeans e
camiseta. Branca. Os olhos castanhos e escuros, eu constatei quando ele
constatou. E sorrimos. E percebi que ao sorrir, os músculos do rosto ao
se contraírem, faziam com que a sua expressão modificasse radicalmente
os traços.
- Quer ajuda?
- Se você puder...
- Eu posso.
- Eu quero.
Assim o diálogo inicial refletia em ambas as frases, o imperativo. Poder e querer são potências indiscutíveis entre dois espaços. E assim o imperativo acaso fez com que momento presente inaugurasse e iluminasse no encontro inédito da mesma cidade, os olhos de um. E de outro. Ajudei a carregar uma das malas quando o trem se aproximou. Ao entrar no vagão, por um momento, o braço dele inaugurou, por acidente e confusão, o toque no meu braço. E antes de poder concluir o pensamento de que aquela era a primeira vez, ele se adiantou em sorriso e falta de jeito:
- Me desculpa.
- Não foi nada.
- Estou atrapalhado.
- Eu concordo.
Seguimos por três estações em silêncio não combinado. A textura da pele, macia, eu arriscaria de tão próximo. E o perfume não era exatamente um perfume. Era bom. Bom, sem dúvida. Até que o trem parou dentro do túnel. E a voz do maquinista, tão treinada quanto segura, nos informou com desprezo de que permaneceríamos parados por mais alguns minutos. Através das janelas, a escuridão subterrânea de um túnel qualquer da cidade. Tentei disfarçar o meu nervoso, até que ele percebeu que eu percebi que ele tinha compreendido o meu nervosismo com fins claustrofóbicos e não era para menos, estar preso dentro de um trem fechado dentro de um túnel escuro dentro de uma estação fechada, abaixo da cidade em movimento.
- Você está bem?
- Não. Sim. Quero dizer, eu...
- Eu entendo. Quer um pouco de água?
- Por favor.
Alguns minutos depois o trem voltou a funcionar. Saímos do túnel. A cidade lá fora em movimento. A possibilidade do pânico diluiu-se no movimento da luz, das pessoas em ação, do diálogo tímido retornando. Pensei nos meus mínimos óbvios. Daquilo que não deve ser banalizado, não deve ser desperdiçado. Daqueles carinhos, de algumas palavras, alguns silêncios necessários. Pensei que às vezes a gente estaciona a vida por necessidade. Outras vezes sem perceber. Simplesmente por perder o ritmo. Pensei em algum filme, desses que me encantam e me ensinam e pensei também que a vida real me interessa muito mais que a fantasia, embora ambas me coloquem em movimento. Tive vontade de convidar o rapaz das malas para tomar uma cerveja. Tive o desejo de ser feliz, assim no repente, como num estalo, dentro do metrô. O desejo maior de ser sabe-se lá se feliz, acho que sim, essa é a palavra que mais se aproxima do que eu gostaria de dizer. De maneira intensa, eu senti. Tão forte. E tão definitivo quanto assustador. Até que ele me interrompeu:
- Eu fico aqui.
- Eu também. Você tá chegando?
- Eu tô indo embora.
Os olhos molhados, ele me disse sem desviar o olhar. Eu tô indo embora, ele me repetiu. Um momento de intimidade surgiu entre nós, sem que nada pudéssemos fazer. Ou dizer. Saímos do trem e a estação nos embaralhou os passos, aos poucos fomos nos perdendo, nos distanciando e nos misturando ao plural. Pensei que às vezes precisamos engolir o desejo. Querer ser nem sempre coincide com o cenário. Com a história. Ou os personagens. Mas é imperativo querer. Contido, rasgado, declarado ou tímido. Querer. Um dia eu acerto. Um dia eu me despeço. Agora digo adeus ao tal homem que eu não sei o nome e que me deixou aceso. Em plena noite carioca. Pensando nos meus ais. Sem som. Óbvio.
- Quer ajuda?
- Se você puder...
- Eu posso.
- Eu quero.
Assim o diálogo inicial refletia em ambas as frases, o imperativo. Poder e querer são potências indiscutíveis entre dois espaços. E assim o imperativo acaso fez com que momento presente inaugurasse e iluminasse no encontro inédito da mesma cidade, os olhos de um. E de outro. Ajudei a carregar uma das malas quando o trem se aproximou. Ao entrar no vagão, por um momento, o braço dele inaugurou, por acidente e confusão, o toque no meu braço. E antes de poder concluir o pensamento de que aquela era a primeira vez, ele se adiantou em sorriso e falta de jeito:
- Me desculpa.
- Não foi nada.
- Estou atrapalhado.
- Eu concordo.
Seguimos por três estações em silêncio não combinado. A textura da pele, macia, eu arriscaria de tão próximo. E o perfume não era exatamente um perfume. Era bom. Bom, sem dúvida. Até que o trem parou dentro do túnel. E a voz do maquinista, tão treinada quanto segura, nos informou com desprezo de que permaneceríamos parados por mais alguns minutos. Através das janelas, a escuridão subterrânea de um túnel qualquer da cidade. Tentei disfarçar o meu nervoso, até que ele percebeu que eu percebi que ele tinha compreendido o meu nervosismo com fins claustrofóbicos e não era para menos, estar preso dentro de um trem fechado dentro de um túnel escuro dentro de uma estação fechada, abaixo da cidade em movimento.
- Você está bem?
- Não. Sim. Quero dizer, eu...
- Eu entendo. Quer um pouco de água?
- Por favor.
Alguns minutos depois o trem voltou a funcionar. Saímos do túnel. A cidade lá fora em movimento. A possibilidade do pânico diluiu-se no movimento da luz, das pessoas em ação, do diálogo tímido retornando. Pensei nos meus mínimos óbvios. Daquilo que não deve ser banalizado, não deve ser desperdiçado. Daqueles carinhos, de algumas palavras, alguns silêncios necessários. Pensei que às vezes a gente estaciona a vida por necessidade. Outras vezes sem perceber. Simplesmente por perder o ritmo. Pensei em algum filme, desses que me encantam e me ensinam e pensei também que a vida real me interessa muito mais que a fantasia, embora ambas me coloquem em movimento. Tive vontade de convidar o rapaz das malas para tomar uma cerveja. Tive o desejo de ser feliz, assim no repente, como num estalo, dentro do metrô. O desejo maior de ser sabe-se lá se feliz, acho que sim, essa é a palavra que mais se aproxima do que eu gostaria de dizer. De maneira intensa, eu senti. Tão forte. E tão definitivo quanto assustador. Até que ele me interrompeu:
- Eu fico aqui.
- Eu também. Você tá chegando?
- Eu tô indo embora.
Os olhos molhados, ele me disse sem desviar o olhar. Eu tô indo embora, ele me repetiu. Um momento de intimidade surgiu entre nós, sem que nada pudéssemos fazer. Ou dizer. Saímos do trem e a estação nos embaralhou os passos, aos poucos fomos nos perdendo, nos distanciando e nos misturando ao plural. Pensei que às vezes precisamos engolir o desejo. Querer ser nem sempre coincide com o cenário. Com a história. Ou os personagens. Mas é imperativo querer. Contido, rasgado, declarado ou tímido. Querer. Um dia eu acerto. Um dia eu me despeço. Agora digo adeus ao tal homem que eu não sei o nome e que me deixou aceso. Em plena noite carioca. Pensando nos meus ais. Sem som. Óbvio.