Por Esther Lucio Bittencourt
Era uma vez, num tempo quase centenário, em que uma senhora bonita e seu marido, alto, magro, de olhos verdes, dançavam a Valsa do Imperador, de Johann Strauss Filho, pela sala de sua casa.
O disco de vinil rodava numa vitrola semelhante a esta aí embaixo.
Antigos, bem antigos, a vitrola, a cena, o disco de vinil e o casal que rodopiava na sala de sua casa, olhos nos olhos, sorriso terno nos lábios, tão antigos que parecem que nunca existiram.
Os filhos, sim, o casal tivera filhos, assistiam inebriados até que eram convidados pelos pais a participarem do baile. Ao som da música o casal restabelecia os desejos de amor eterno, e as crianças felizes e seguras na confiança que a estabilidade oferece cresceram, dançaram suas músicas de outros tempos, talvez Ray Conniff e Waldir Calmon umas e outras disko, funk, sambas, e emboladas.
Assim a vida passou. As crianças cresceram, casaram, seus filhos nasceram, cresceram e filhos tiveram . A senhora bonita e o homem de olhos verdes foram embora carregados pela indesejada das gentes.
Os pais e alguns destes filhos viveram a desagradável experiência da segunda guerra mundial, viram o vinil transformar-se em cd, a valsa do imperador cair no esquecimento e outros hits de sucesso povoarem as danças e a morte dos salões de baile.
Quando esta foto foi clicada por meu pai, Tonio, como era chamado pela família, de minha mãe Sara e de mim e Vera, bem bebê, de chuca chuca, ainda corria a guerra. As casas antigas da Rua Mario Viana , em Santa Rosa, Niterói, formam o cenário desta cena flagrada no jardim da casa de minha avó paterna, Martha.
Lá está a casa de dona Marieta, do Jacinto e sua mulher e, escondida dos olhos, algumas casa depois , à esquerda de quem está de frente para a foto, a casa de minha avó América, nome recebido em agradecimento por ter conseguido aportar no novo mundo.
Morávamos todos na mesma rua, uns protegendo o outro de apedrejamentos de casa, -por saberem que ali morava gente de origem alemã- da falta de ticket para a compra de alimentos e do leite, essencial para as crianças.
A máquina não era digital, devia ser uma Leika bem antiga de filme em rolo que precisava ser revelado, o que era um processo demorado. À época nem sei como isto era feito, mas papai, cuidadoso, escrevia atrás de cada foto capturada o nome das pessoas fixadas na imagem, dia , ano , hora e local do acontecimento.
O sapato de verniz com presilhas na frente, usado por minha mãe Sara, era a característica da família, todas as mulheres o usavam, geralmente presenteadas por vovó Martha.
Eu era a de cabelo escuro, na foro parecem negros, mas eram cor do mel e variavam a tonalidade como meus olhos, caso pegassem sol. Vera era absolutamente loura de olhos azuis.
Hoje, meus cabelos embranqueceram, ficaram cinza, e ouço, enquanto posto este flerte com o passado, a Valsa do Imperador.
Fui remetida para nossa sala, meus pais dançam, sorriam e nos convidam a valsar também.
Participamos assim de um namoro que nos acalentou pela vida e nos faz sentir saudades do antigo lar. Eu sinto.
Hoje sei que os namoros não são como os de antigamente quando os romancistas contavam do frisson que os homens sentiam ao adivinhar num balanço de saias a possibilidade de vislumbrar os tornozelos de alguma mulher que povoava seus sonhos.
O mundo evoluiu.
Evoluiu... Evoluiu?
Ou foi desvendado que o sentimento precisou fazer guerra também para se adequar aos tempos modernos? Sei,lá....
Saudades da minha rua, das casas amigas, dos braços de meus pais e do casal que, com um olhar, dizia o mundo.
Hoje todas as ruas são nossas, do povo todas as praças; todos os amores são possíveis e o dinheiro compra o afeto.
Mas antes, também eram nossas as ruas, no entanto, diferente este possuir que na realidade era ser e estar.
Antes... ah, deixa disto, Esther, ficar no passado é coisa de pessoa velha!
Mas, até Ray Conniff envelheceu e frequenta o Youtube, nem mais vinil tem, é blue ray!
Enfin, tout passe ,tout casse, tout lasse.