quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

CORRESPONDÊNCIA URBANA. A CIDADE EM CONSTRUÇÃO

Querida Ana Paula,

China Moderna: projeto
urbano inspirado
no "Sim City"
Vi recentemente um documentário sobre Juscelino, Niemeyer e a Pampulha. Fiquei sabendo que a Pampulha foi a primeira obra arquitetônica dele, que sempre privilegiou as curvas - sei lá se baseado no contorno do corpo feminino ou na curvatura do planeta.

O documentário falava sobre a alteração que Juscelino provocou em nossos corações e mentes ao ousar propostas de cultura - seja antiga ou moderna - assim, ampliando o conhecimento do povo em geral.

Estou ditando essa carta para Ana Laura (pois permaneço com três cervicais achatadas), sentada numa cadeira de traços retilíneos baseada no banco caipira mineiro feita pelo Carlos Simas, que é de um conforto atroz. Reporto-me a essa cadeira porque penso se as cidades não deveriam nos oferecer tal comodidade e prazer como ela me oferece. No entanto, vemos poluição, engarrafamentos, sujeiras, odores desagradáveis, etc.

Minha amiga, o que seria para você a cidade ideal? Como deveria ser desenhada?

Beijos, Esther



São Paulo
Ana Paula Medeiros
Professora substituta de História da Cidade e do Urbanismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e doutoranda em Urbanismo, também na FAU-UFRJ, na linha de pesquisa Estrutura, Morfologia e Projeto do Espaço Urbano.

Olha, Esther,

Como esse tema me é muito caro, eu vou usar um subterfúgio meio desleal pra agilizar a resposta: vou recorrer a um dos meus primeiros posts, lá no Urbanamente, em que eu tratei disso, e retomá-lo com algumas intervenções. Aliás, até hoje, é a questão que mais leva gente ao blog. O conceito de cidade em si, e de cidade ideal. 

Vou começar dizendo, meio teimosamente, que tenho grande implicância com a expressão "cidade ideal". Não a uso. Acho mesmo que não creio nela. Mas sinto falta da discussão e das propostas que animaram tantas buscas por este ideal. Pra me explicar, vou ter que voltar lá atrás um tiquinho, posso? Se você achar que ficou muito comprido, pode desmembrar, como achar melhor.

Londres
No princípio, era a barbárie. A selva, a lei do mais forte, o comer o que tinha, o dormir onde dava, o ser sem saber que era. Depois vieram a consciência, a reflexão, o trabalho, o querer mais, o querer melhor, o querer diferente, a civilização, a história. A cidade. Ao preço de reprimir os instintos, criar a lei, identificar o certo, punir o errado, sublimar desejos. Ao preço de se tornar homem. Segundo Freud, ao preço de um tremendo e eterno mal-estar, que ao mesmo tempo nos incomoda, nos confronta com sombras e heranças escondidas, e nos impulsiona, nos possibilita o convívio e a experiência urbana, nos põe em movimento.
Nova Iorque

A cidade é, assim, o lugar que resultou desse salto, o habitat do homo urbes. A cidade – e tudo o que ela significa, em cada uma de suas faces – é o lugar, por excelência, onde se manifestam e resolvem os conflitos, se criam e dissolvem as tensões, onde se encontra e se desencontra todo tipo de gente, de jeito e de atuação. É o lugar da diferença, e por conseguinte, da negociação constante, muda ou deflagrada, cordial ou belicosa.

O bárbaro ainda está aí, à espreita, e quanto mais esgarçados os laços que nos fizeram urbanos, que nos fizeram cidade; quanto mais fragmentados nossos vínculos de urbanidade e solidariedade, mais frágeis nos tornamos, mais vulneráveis ao retorno à selva, à violência. Por baixo da pele de cidadãos, ainda habita um homem cheio de potência e contradição.
Roma

A questão é que não há e nem haverá mais inocência. Mesmo o selvagem que
 irrompe aqui e ali tem alguma reflexão sobre seus atos, alguma idéia, por absurda ou desprezível que possa parecer a outrem. Há valores em jogo, todo o tempo. Vários, distintos. Valores irrefletidos e repetidos em coro, decalcados de representações alheias. E valores bem pensados, frutos de uma lucidez aguda e pungente, ou pelo menos de uma busca genuína dessa auto-avaliação. Mas desde que se fundou a primeira cidade da história, se fundou também a ideia e a prática do palco. Somos atores e platéia, críticos, diretores, produtores, figurinistas, bilheteiros, lanterninhas, de um grande e ininterrupto espetáculo coletivo. Olhamos e somos olhados. A cidade é um conjunto das representações que fazemos dela. E nela. É um mosaico em movimento, um caleidoscópio.
China

A cidade é um lugar de encontro. É pública (em que pesem os empreendimentos que vendem cada vez mais a ilusão de uma cidade "privada", onde tudo funciona lindamente e você pode morar com segurança, comodidade, bem-estar imorredouros).

A cidade é um lugar de múltiplas funções. Há uma dimensão física na condição humana, a necessidade da sobrevivência, do abrigo, da comida, da vestimenta, ainda que mesmo esta dimensão já esteja irremediavelmente associada aos valores culturais e estéticos de que lhe impregnamos e com os quais lhe vivemos a experiência. Há a arte, o desejo, o prazer, o imponderável, que remete à dimensão espiritual e transcendente da vida, alimento igualmente fundamental à sobrevivência e à experiência urbana. Há vários tempos na cidade, camadas, reinvenções, reconstruções, sedimentos, fissuras, o ontem, o hoje, a memória, a tecnologia, tudo junto misturado agora. Há vida impregnada nos pequenos objetos de todos os dias, no afeto emprestado aos artefatos.
Amsterdã

É um lugar de diversidade, com "tribos" diferentes, frequentando e produzindo
 continuamente seus espaços, e, sobretudo, colaborando para que a cidade exista. Gente de tipos variados, jovens e velhos, mais conservadores ou mais descolados, classes sociais diferentes, ideologias, gostos, opiniões, experiências, limitações e contribuições. 

É um lugar onde pulsa o movimento. Onde há fluxos, de informação, de gente, de bens. Onde há produção, consumo, criação. Num mesmo espaço físico, a cada dia transitam vidas diferentes, que configuram paisagens diferentes. E mesmo os espaços físicos muda. Acompanha uma moda, uma necessidade de reciclagem, de manutenção. Tudo fala de efemeridade, de transitoriedade. De movimento.

Cidade para mim, é isto. Uma rede de interações e representações, que pulsa, que se transforma o tempo inteiro. Cidade é processo. É evidente que, a esta altura, assumo a noção de que cada cidade são várias e que, para cada um de nós, cada imagem da cidade é mediada por suas experiências, sonhos, expectativas, desejos e frustrações.

Aqui entra a minha dificuldade com o conceito de cidade ideal. 
Mikonos (Grécia)

É que, historicamente, esse conceito sempre esteve associado a algo estático. A um estado a que se almeja chegar, e no qual, quando alcançado, todos os problemas estarão resolvidos. Idealizamos, fantasiamos, projetamos, isso não é ruim, pelo contrário. Se serve de motor, é ótimo. Se serve de meta, de destino final, aí está o problema. Idealizamos o passado, nossa memória é uma narrativa para sempre ficcional, subjetiva. Idealizamos a cidade, talvez desde sempre. Os poetas gregos já cantavam suas cidades, as virtudes de seus cidadãos, a glória de suas conquistas. E de longe parece tudo tão mais lindo, os dias são ensolarados, as águas são azuis, os jardins são floridos, as casas são amplas, os heróis são virtuosos. De perto, há barulho, sujeira nas calçadas, a chuva faz transbordar os bueiros, os ônibus buzinam e param em fila dupla, meninos pedem esmola nos sinais e cheiram cola sob a marquise.

Sonhar uma cidade melhor (eu disse melhor, não disse perfeita) é importante, sim. Mas não pode obliterar nossa visão, nos impedir de enxergar as mazelas de todo dia. Nem deve nos fazer desistir.

Foi ali pelo Renascimento que surgiu com força essa coisa de pensar e propor a Cidade Ideal. Quantidades de arquitetos escreveram tratados e propuseram planos, descrevendo como seria essa cidade. Como a onda era o racionalismo, o humanismo e tal, esses desenhos de cidades eram quase sempre figuras geométricas regulares: cidades circulares, octogonais, em forma de estrela, quando muito quadradas. Sempre figuras que se podia inscrever no círculo, a mais perfeita das formas. O eixo principal dessa perfeição e idealização da cidade era a estética. A cidade ideal devia ser bela. Ninguém ainda se preocupava com os aspectos sociais ou funcionais da cidade. Isso só veio com a Revolução Industrial e suas mazelas.
O renascimento surge com a utilidade do
octógono, não só de um ponto de vista
 simbólico mas também construtivo.
É de base octogonal a cúpula de Santa
Maria del Fiore em Florença,
obra-prima do Brunelleschi.
Só que ficou, pra nós, uma expectativa meio mecânica de que uma cidade bem planejada é uma cidade sem problemas, que funcionaria como um relojinho, cada coisa no seu lugar. Como se a cidade fosse um objeto inerte que, uma vez organizado, limpo e “consertado”, assim permaneceria. E mais, ficou uma certa impressão de que cabe ao Estado elaborar, executar e fiscalizar um plano de intervenção que acabaria com os problemas da cidade. Nós estamos no século XXI, lidamos com realidades virtuais, desterritorialização do trabalho e da economia, multiplicidade das possibilidades de comunicação e relacionamento, mas ainda pensamos a cidade bem parecidinho com o que faziam os caras lááááá no século XVI ou XVII.

No livro “O que é cidade” (Coleção Primeiros Passos, Editora Brasiliense), Raquel Rolnik lista quatro temas recorrentes das idealizações renascentistas que ainda permeiam nossas concepções de cidade:

1) A tendência a fazermos uma leitura mecânica da cidade, como se ela se reduzisse a uma circulação de fluxos – de pedestres, de veículos, de cargas, de dinheiro, de ventos ou águas;

2) A ideia de ordenação matemática (regularidade, repetição) como base da racionalização na produção do espaço;

3) A suposição de que uma cidade planejada é uma cidade sem males (muita gente boa no planejamento urbano, lá no fundo, ainda trabalha com essa hipótese)

4) A crença na capacidade do Estado de controlar a cidade, através das normas, da legislação, da fiscalização e, em última instância, da polícia.
Eu só tenho uma coisa a dizer: esquece. Essa cidade dócil e arrumada não existe, nunca existiu e não existirá (amém). A gente precisa, cada vez com mais urgência, pensar a cidade como processo, como algo em constante mutação e construção, e principalmente como uma construção coletiva, o que significa que é muito provável que os rumos tomados a cada instante não sejam sempre aqueles que euzinha desejaria ou consideraria melhores. A cidade não pertence ao Estado, ela pertence a todos nós e especialmente a quem dela participa (vocês já pararam pra pensar na proximidade semântica das palavras POLIS – que designa as cidades-estado gregas e POLÍTICA?). Aos que se omitem, restam a reclamação vazia, o nariz torcido e a desesperança.
Françoise Choay

Há uma autora ótima que trabalha muito com esse tema, chama-se Françoise Choay. Há dois livros em especial, em que ela se debruça sobre essa questão, da elaboração histórica das propostas sobre cidades ideais. Um deles se chama O Urbanismo, e nele ela examina especialmente os pensadores dos séculos XVIII e XIX e suas crenças sobre as causas dos problemas das cidades, bem como as soluções que eles apresentavam. O outro livro, mais erudito um pouco, mas fantástico, chama-se A Regra e o Modelo, e nele Choay desenvolve o tema da cidade ideal a partir da pesquisa sobre os tratadistas do Renascimento, começando com Leon Batista Alberti e sua releitura do tratado de Vitruvius, do século I d.C., e seguindo por muitos outros, da Itália, da França e da Inglaterra, que perseguem essa miragem, com destaque para a Utopia de Thomas Morus. 

Eu digo miragem mas longe de mim retirar o valor fantástico dessas proposições, que hoje, em nosso mundo tão pragmático, nos fazem imensa falta. Podemos falar mais disso depois, a importância de voar no sonho da cidade, para poder construí-la no aqui e agora com realidade, mas também com poesia.

Beijos,
Ana Paula