domingo, 20 de fevereiro de 2011

SENHORA DO TEMPO


Por Carlos Alberto Prais

A manhã de 7 de outubro de 1963 estava tão quente quanto todas as manhãs de todos os outubros na pequena Ipatinga. E o calor ainda se fazia mais forte pelas muitas pessoas que vociferavam à porta da usina siderúrgica que, recém-implantada, ainda engatinhava.

Distrito de Coronel Fabriciano, no Leste de Minas, aquele lugarejo encravado a meio caminho de Vitória, no Espírito Santo, fora o local escolhido pelo governo mineiro para plantar a Usiminas, com a sina de se tornar a grande concorrente da CSN, um outro monstro fazedor de aço, vindo à luz por obra e graça de Getulio Vargas, em Volta Redonda, no Rio de Janeiro.

Tão logo se lançou a pedra fundamental, Ipatinga irradiou o perfume da riqueza por todos os lados e tornou-se o El Dorado em pleno sertão das Minas Gerais. Nessa época, os botocudos já haviam sido exterminados e, por ali, só restavam os mosquitos da febre amarela e os carvoeiros, que alimentavam os fornos da siderúrgica de João Monlevade, no caminho de Belo Horizonte.

Ipatinga, Complexo Viário, 2002 
Gentes de todas as cores, armados de mala e cuia, e mais cachorros, gatos, passarinhos, papagaios e uma fileira de filhos, ainda catarrentos, para ali se mudavam na esperança de novos dias. Bolívia, Peru, Chile, Japão, Piauí e Bahia estavam representados ali. Também cearenses, mato-grossenses, paulistas, cariocas e fluminenses, alagoanos, mineiros, capixabas e catarinenses. Tantas bandeiras, não livraram essa gente de ser identificada como baiano, no singular; plural: baianada.

O Juá, Centro de Ipatinga, 1960
A lua cheia da noite anterior, o 6 de outubro, presenciara mais uma cena que já se tornara corriqueira na saída dos operários da fábrica: a vigilância da empresa submetia os trabalhadores a cenas de humilhação e eles, via de regra, iam curtir a raiva no boteco mais próximo; ou no Juá, a zona boêmia que, a bem da verdade, era a única empresa que ali prosperava.


Naquela noite, porém, a coisa passou da conta: um dos operários recusou-se a entregar ao guarda uma sobra de leite que levava para casa. Ânimos exaltados, um manda o outro para aquele lugar, um diz que a mãe do outro é aquela; o fardado usou da sua autoridade, sacou o revólver e atirou na sacola de leite que, inocente, assistia a tudo na mão do rapaz. A portaria se fez praça de guerra.

Estação Pouso de Água Limpa, 1955
A noite não dormiu; a manhã não acordou.

Notícia ruim é cavalo sem freio, a baianada foi avisada. Meio milhar de indignados desceram dos alojamentos, tal e qual uma enxurrada, que ia levando e revirando, à sua passagem, tudo que havia pela frente: tampinhas de garrafas, latas de lixo, carros, caminhões, ônibus, cerca e muro.

Notícia ruim é cavalo sem rédea, a policia foi chamada. Meia dúzia de praças e um cabo, é sabença geral, não dão conta de uma empreitada dessas, e o destacamento de Governador Valadares, a uma hora e meia de caminhão, foi acionado.

Não vivesse ali, desde sempre, e o Retratista teria um futuro bem promissor em outros ares. Tinha o faro da notícia, das coisas pequenas que se tornam grandes. Lera, escutara, sabe-se lá aonde?! que, se um cachorro morde alguém, isso não é notícia; mas, se alguém morde um cachorro, aí, sim está a sua manchete.

Um dos hotéis da cidade, 2002
Desde a noite anterior, quando a história do tiro na sacola espalhou-se, que ele sentira o fedor da esparrela. Deixar bem cedinho a cama, já com a Rolei e o Camelo em ponto de bala e partir para a luta, que “debaixo daquele angu tinha caroço”.

Além de umas duas mudas de roupa, seu patrimônio não ia muito além da bicicleta Philips, aro 28 X 1 ½ e da máquina Rolleiflex. Todos os dois, conseguidos de segunda mão e em suaves prestações, das mãos do Abdalla, um turco que tinha no catálogo de vendas um leque de produtos que ia de fusquinhas a pomada para cravo e calos.

Apesar de madrugar, quando chegou à portaria do Escritório Central já lá estavam as personagens com os seus papéis distribuídos e ensaiados: de um lado, os baianos, cujas roupas coloridas acusavam sua ira; do outro, os meganhas, cujos uniformes cáqui confessavam sua indiferença..

O massacre
Aquele flagrante do praça empunhando a metralhadora seria, com certeza, apenas um dos grandes momentos que capturaria naquele teatro de guerra. Quem sabe, ali estava a sua redenção, a venda para um grande jornal da capital, um convite para ir dar com os costados em outras paragens?

Não teve muito tempo para comemorar, nem para outra foto: o soldado percebera a sua ação e retribuíra com a mesma presteza. Atirou nele e continuou atirando. Daí, foi gente correndo, tombando e gritando; gente, gritando, tombando e correndo. Daí, foi a lenda: morreram oito, mas ficaram oitenta viúvas. Afinal: oito ou oitenta?

Notícia ruim é cavalo sem rédea, é cavalo sem freio. Minas Gerais foi avisado, o Brasil foi alertado o governador perdeu a rosca, resolveu compensar a baianada: emancipou Ipatinga.

Rua São José, Novo Centro, 1960
Hoje, daquele tempo, ela só guarda o calor abrasador dos outubros que não invejam em nada os janeiros quentes de outros lugares desta terra do pau-brasil. É, hoje, uma cidade sem lembranças das construções de pau-a-pique do passado, da poeira do passado, da lama do passado, da baianada do passado.

Duvida? Vem cá pra ver: temos jornais diários, TV a cabo e satélite, shoppings, teatros, largas avenidas asfaltadas, ruas apinhadas de automóveis; integramos um colar metropolitano, exibimos empresas de transporte coletivo, Casas Bahia, agências de turismo e de câmbio, estádio de futebol e um time que já desfilou na elite do Brasileiro. Até uma Miss Brasil já tivemos. De JK para cá, não houve um só presidente que não desse uma mijadinha por aqui (exceção é a Dilma, que cá não veio nem pedir votos, mas ainda vem);  nossos jovens andam semi-nus e exibem indecifráveis tatuagens,  não temos inveja dos políticos ladrões e sem vergonhas de qualquer outro lugar. Nosso mercado de crack é deveras mui promissor, pari passu da prostituição infantil, roubos, assassinatos e quejandos, em profusão.
Centro de Ipatinga, 2002

Nossos livros de História ensinam que o governador Magalhães Pinto, para dar uma satisfação a Minas e ao Brasil, foi quem emancipou a cidade; para os que não são bestas, nem abestalhados, porém, na verdade, essa proeza foi fruto daquela foto, daquele tiro e daqueles oito mortos que deixaram oitenta viúvas.