sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

"O JAZZ" DO SERTÃO. ReCApiTULLandO a PAIXÃO

Por Ana Laura Diniz

Oh, que saudade do luar da minha terra
Lá na serra, branquejando 
folhas secas pelo chão
Este luar cá da cidade tão escuro
Não tem aquela saudade do luar lá do sertão...

Desde o dia em que soube que a Sonja, uma amiga querida que mora há anos em Londres, compartilha do mesmo gostar em relação ao Catullo da Paixão Cearense, penso nela quando o escuto.

Ontem não foi diferente. A noite fria, incomum até então no verão, e estrelada, levou-me numa melodia assoviada a essa lembrança.

Ainda menino, o filho do ourives Amâncio José da Paixão Cearense e de Maria Celestina Braga deixou a cidade de La Ravardière, no Maranhão, e partiu com a família rumo ao sertão cearense para a fazenda dos avós paternos. 

Ao contrário do que possam imaginar, a seca jamais existiu: bebeu sabedoria de gente simples, embrenhou-se entre os matutos e abraçou a viola como eterna companheira.

Se a lua nasce por detrás da verde mata, 
mais parece um sol de prata
prateando a solidão
e a gente pega na viola que ponteia,
e a canção é a lua cheia
a nos nascer do coração...



Além de violonista, foi flautista, letrista, cantor e poeta. Sua primeira modinha “Ao Luar” (1880) deu margem a muitas outras como “Talento e Formosura” (1906) e “Caboca de Caxangá” (1913). 

Poucos retrataram tão bem a face do boêmio apaixonado.

Aos 17 anos, Catullo deixou o Ceará e mudou com a família para o Rio de Janeiro. Nada mais o afastou da música. Nem fatos políticos como a Proclamação da República e as crises políticas dos presidentes Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto por ele vivenciados.

Em 05 de julho de 1908, ele firma definitivamente os passos para a história da música brasileira ao levar o violão das rodas de seresteiros para os conservatórios eruditos de música, a convite do maestro Alberto Nepomuceno. Resultado: passou a ser respeitado pela crítica e merecidamente ovacionado pelo público.

Não há oh! gente oh! não 
luar como esse do sertão...



Seu auge foi na Rádio Nacional do Rio de Janeiro com “Luar do Sertão” (1910), que chegou a inspirar escritores como Lima Barreto – que tirou as vestes de Catullo para cobrir o personagem Ricardo Coração dos Outros, um violonista compositor de modinhas, coadjuvante do clássico pré-modernista “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, obra que ressalta e denuncia os causos políticos e históricos ocorridos justamente durante à fase de instalação da República, mais precisamente no duro governo de Floriano Peixoto (1891-1894).



É, mas o que suscita luxo atrelado à fama, engana. A ida ao Rio foi também tingida pelo falecimento da mãe, e três anos depois, o do pai. Sem opção, durante o dia o boêmio trabalhava no cais como estivador, e às noites, quando dava tempo, reservava-as às canções.


Coisa mais bela 
neste mundo não existe
do que ouvir um galo triste
no sertão se faz luar
parece até que a alma da lua que descansa
escondida na garganta 
desse galo a soluçar...



Mas como mesmo o que é bom um dia acaba, no dia 10 de maio de 1946 Catullo veio a falecer. Como muitos que foram grandes, morreu à míngua: sua única renda, provinda dos direitos autorais, foram vendidos por merreca para um amigo. Terminou a vida em uma modesta casa de madeira no subúrbio carioca de Engenho de Dentro, com a poesia e a viola debaixo do braço.

Ai quem me dera que eu morresse lá na serra
abraçado à minha terra
e dormindo de uma vez
Ser enterrado numa grota pequenina
onde à tarde, a Sururina 
chora a sua viuvez...



Mas como sempre, parte o artista, jamais a sua obra. Nomes como o de Vicente Celestino, Paulo Tapajós, Orlando Silva, Carlos José, Luiz Gonzaga e Milton Nascimento bem representaram Catullo. As últimas regravações feitas primorosamente nos quesitos – interpretação, harmonia e arranjo – foram de Marisa Monte, em “Ontem ao Luar” (no original de Pedro de Alcântara, parceiro de Catullo, chamava-se “Choro e Poesia”), no compacto simples “Marisa Monte”, de 2001; e Maria Bethânia, que interpretou “Luar do Sertão”, em seus álbuns “A força que nunca seca”, de 1999, e “Brasileirinho ao vivo”, de 2004.

Quanto a Bethânia, saibam, devem sempre suspeitar de meus escritos porque não poupo adjetivos: sou fã fervorosa dessa mulher, de quem, certamente, falarei um dia, bem mais adiante.

Hoje fico com Catullo. E a Paixão que nunca morre.

Discografia

- Catullo da Paixão Cearense nas vozes de Vicente Celestino e Paulo Tapajós (relançado em CD, 1994);
- Catullo – O poeta do sertão (1958, vinil);
- Catullo – Intérprete: Tenor Vicente Celestino (1955, vinil);
- História da música popular brasileira, vol. 38 – Catullo da Paixão e Cândido das Neves;
- Luar do Sertão – Paulo Tapajós com orquestra e coro interpreta Catullo da Paixão Cearense (vinil).


Marisa Monte em "Ontem ao Luar"


Maria Bethânia em "Luar do Sertão"