domingo, 6 de fevereiro de 2011

A SENHORA DO TEMPO FALA SOBRE GETÚLIO, A SEGUNDA GUERRA E NOVELAS

Por Esther Lucio Bittencourt



O que se usava no tempo de dona Zizinha era respeito, também. Mas qual o seu tempo se ele é hoje? O tempo de ontem é do que ela mais lembra. A vida era melhor, mais suave, dava para medir o andamento de uma sonata, a duração de um compasso. Havia tempo para resoluções, respostas e perguntas. Hoje este tempo é reconhecido como o tempo da onça, de dom João Charuto, do ronca e de quando se amarrava cachorro com linguiça.

Era uma época fabulosa que hoje em dia só existe na memória e, por isto, a tempo e a hora, pode ser evocado pela benevolente lembrança. Hoje ninguém anima perder seu tempo e latim, mas nas cidades do interior, onde eles param para tomar fôlego e, depois, ser devorado pelo estresse das metrópoles, é desfiado em contas de palavras contadas e fiadas em tear de contares.


Presidente Dutra
"Sou muito vivida, passei pela história do Brasil quase toda. Lembro do Dutra presidente. Ele quem fez a Rodovia Presidente Dutra, eu lembro! Ele esteve aqui em Caxambu. Era meio gordão. A parecença total não estou sabendo mais. Lembro do presidente Getúlio Vargas, eu o vi cara a cara, assim. Eu morava solteira ainda, em Cruzília, com meus pais. Ele veio passar uns dias na casa de Seu Sollis, um dinamarquês muito rico que tinha lá. Então o Getúlio veio com o capanga dele e ele queria conhecer as fazendas como a Favacho, a Angaí, onde nasceu o cavalo manga larga marchador. Queria ver todas as fazendas de lá que são muitas. Aí levaram ele. Passou com seu Sollis dentro da cidade, ele à cavalo, os três em cavalões muito bonitos, porque o Gregório Fortunato foi junto. Eu fiquei na porta da casa da minha tia vendo. Ele passou fazendo assim para todo mundo (abanando a mão). Ô homem bonito! Dando adeus.

Presidente Getúlio Vargas
Era muito bonito o Getúlio Vargas. Muito bom! Deu vida para o povo. De primeiro, o povo morria e não tinha nada, hoje tem aposentadoria, tem tudo, não é? Foi um grande presidente."

É preciso que a tarde seja longa para o tempo caber nas histórias que dona Zizinha conta. 88 anos lúcidos ela participa de tudo. Só não suporta mais ver os jornais de televisão porque cansou de tragédias . "É como se o mundo fosse uma desgraceira só. Ninguém fala nada de bom, parece que só tem coisa ruim." 

Seu nome verdadeiro é Maria José Ribeiro e faz o melhor café do mundo. Quer ver dona Zizinha feliz é dar a ela um monte de roupa para lavar no tanque e sentar a seu lado para ouvir os causos.

"Ele governou 14 anos, ditadura! Ele era um ditador! E todo mundo votava só nele. N'outro dia eu vi na televisão um rapaz que parecia o Jânio Quadros, igual, igual. Criei filhos a vida inteira e quando meu marido morreu tive direito na aposentadoria dele, que me serve muito, senão, como iria fazer? Meu marido era um grande mecânico. Tinha duas oficinas aqui em Caxambu. Mas ele morreu e eu tenho a pensão dele, coitado! E foi o Getúlio que deixou isto. Podem querer acabar, estes novos presidentes, mas não termina não! Isto aí é plantado pelo Getúlio e Dutra que o acompanhou também, para sempre. Lembra da guerra de 42? A do mundo? Eu casei em 1944.

Sete momentos da cidade
de Caxambu, Minas Gerais
Eu não tinha televisão, em Caxambu não tinha, Cruzília também não tinha nada. Meu tio ia no correio e pegava o jornal. Sentava lá perto de casa, morava pertinho de mim... aí que dor.... morreram tantas pessoas! Tantos brasileiros, tantos japoneses e hoje a gente vê as guerras ao vivo e não gosto. Não gosto de ver. Hoje a gente vê ao vivo, não é? Mas graças à Deus o Brasil ainda não está na guerra. Tô orando pelo Brasil! Tenho tanto medo! Mas Deus é grande e esta guerra vai acabar para lá mesmo".

Os pais de dona Zizinha tiveram dois filhos; ela e a irmã. O pai era seleiro, fazia arreios para cavalo, selas. "Eu aprendi com ele a fazer charrua. Sabe as rédeas? Não tem um trançadinho na ponta da rédea? Aquilo é charrua! Eu sabia fazer. Mas agora o tempo passou. Já esqueci. Ah, fazia chicote também. Naquela época não tinha nenhuma violência. Esta violência forte está de 25 anos para cá. Por que existe muita droga! O que o governo pode fazer com a droga? Ele queima aquele tanto, quando vai ver chega muito mais naqueles caminhões enormes. Vem de fora.

Eu morei no Paraná há 20 anos atrás. Eu ia sozinha daqui pegar o ônibus, chegava em São Paulo, pegava outro ônibus e já eram seis horas da tarde, ia até Campo Mourão. Viajei para lá e para cá umas 15 vezes. Meu marido tinha oficina mecânica no Paraná, mas quando minhas filhas iam ganhar neném eu vinha para Caxambu. Hoje, se eu fosse nova não viajava mais não!" 

Dona Zizinha quadruplicou o número de filhos que seus pais tiveram. Oito ao todo: quatro homens e quatro mulheres, uma morreu, mas no lugar dela tem uma filha de criação. "Tenho 14 netos, 10 bisnetos, e fico olhando o mundo em que eles vão viver e oro muito. A vida está tão difícil...

A guerra foi muito difícil. Mas a gente não via na televisão. Acho que ela só chegou aqui em 1962 quando o Abel, meu marido, comprou a televisão. A primeira televisão que teve aqui em Caxambu foi no Aro, era o apelido dele, era do Bar Esporte, _ hoje é o bar do Jacob perto da Padaria Curitiba - a criançada juntava lá para ver o programa da pantera cor-de-rosa. Lá no Aro, que sempre chamou Jaw’s bar.

As pessoas mais idosas viam novelas. Quando o Abel comprou a televisão estava passando O direito de nascer. Lembro de tudo, só que esqueci o nome dos artistas... mas os personagens eu sei. O Salatiel morreu, que era o homem mais ruim, avô do Albertinho Limonta. A Maria Helena é aquela que ficou grávida do menino, o pai expulsou, mandou extraviar ela, não é? Acho que a Maria Helena é a Natália Timberg... Albertinho Limonta morreu, era o filho dela. Depois, no fim da novela, ele curou o avô. Quando Salatiel ficou sabendo que era avô dele, chorou muito; o neto dele, o Albertinho Limonta, que era metido tinha curado ele. Era uma história muito bonita.

Depois de O direito de nascer vieram muitas novelas, mas eu gosto mais de Selva de Pedras. Teve os Irmãos Coragem. Isto tudo eu assisti. Mas muita coisa não lembro porque tem a idade, a cabeça já não está boa!"

E assim a tarde cai de mansinho sobre a voz dela .


ESTE ODOR DA TARDE QUANDO COMEÇA O CANSAÇO DOS HOMENS
Cecília Meireles

Este odor da tarde, quando começa o cansaço dos homens,
Quando os pássaros t6em uma voz mais longa, já de despedida.
Declina o sol - esta é a notícia que a terra sente, na floresta e no arroio.
Uma nova brisa percorre a murta e resvala na relva.
E os faisões gravemente passeiam as marchetadas plumas.
Docemente perdem as flores sua esperança, o perfume, a memória.
Todos os dias assim, neste caminho de auroras e crepúsculos.
E então o odor da terra é uma exalação de saudade,
um suspiro de consolos, também e o orvalho que as plantas formam, 
com seus íntimos sumos, de silenciosa confidência,
parece igual à lágrima,

e cada folha, nas árvores, é um outro rosto humano.