quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

CORRESPONDÊNCIA URBANA

Nova Friburgo, antes da tragédia
Sabe, Ana Paula,

Penso nas cidades que conheci, como Friburgo e Teresópolis, a primeira onde fiquei alguns meses dos verões da infânica e, Teresópolis, que frequentei sempre e, ao vê-las nas fotografias do após a tragédia, não reconheço. Onde está a praça do suspiro, em Friburgo, residente na minha memória e que posso contar da cor, sobre o perfume das plantas das casas e das matas vizinhas,  o odor de bife de fígado frito na manteira, o pirê de batata baroa que aprendi a apreciar lá? 

Onde está dona dora, que trabalhou no Hipódromo da Gávea e morava em Teresópolis onde tinha um haras ao lado do rio piabanha, com quem fiz escola espanhola de equitação? O haras ao lado do rio, ficava perto do hotel Brasil, onde me hospedava, próximo ao restaurante la cremaillere, onde jantava comida francesa, crepe suzette. E a taberna alpina de dona Erna, onde à noite nos reuníamos para tomar chope preto, comer chucrute e salsichão com mostarda preta? ah...e o golfe clube onde fui algumas vezes andar com tacos e acertar bolas nos buracos até chegar ao nineteen hole, o bar do clube.

Eu não morei nestas cidades e sinto falta das paisagens, principalmente de Friburgo. E isto me angustia. Imagine como deve sentir-se quem lá mora e sempre morou e tem como referência de vida, como história, a convivência com a vista que se via das janelas das casas, as pessoas com quem conversar, trocar trocados com que construíam sua história?


Como o urbanista pode encarar o desafio de recriar mundos?

Beijo, Esther

Ana Paula Medeiros
Professora substituta de História da Cidade e do Urbanismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e doutoranda em Urbanismo, também na FAU-UFRJ, na linha de pesquisa Estrutura, Morfologia e Projeto do Espaço Urbano.

Esther,


Ainda que com imenso atraso, e com igual cautela, respondo-lhe. Hesito em me soltar poeticamente em temas tão pungentes. Prefiro ser bem pragmática.

Há perdas. Fato.


Estive recentemente lendo mais coisas a respeito, e me deparei com este texto e estas imagens:
 

http://cidadeinteira.blogspot.com/2011/02/tragedia-em-nova-friburgo.htmlSão uma montagem virtual a partir de fotos de satélite, que mostram a proporção do estrago nos vales que constituem os núcleos urbanos do município de Nova Friburgo. O que salta aos olhos é que a maioria dos deslizamentos ocorreu em áreas não habitadas. Eu vejo aí duas questões. A primeira é que não apenas áreas habitadas estão sujeitas a deslizamentos. Claro, ocupações desordenadas, adensamentos excessivos podem potencializar estragos. Mas há outras vulnerabilidades ambientais.


Nova Friburgo, depois da tragédia


Em primeiro lugar, chuvas excepcionalmente fortes podem arrastar terras e vegetação, independente da ação humana. Faz parte dos ciclos naturais. Devem ter acontecido episódios como esse muitas e muitas vezes antes, centenas de vezes, em eras anteriores. Como não havia habitações em grande escala, não houve danos consideráveis, e os que eventualmente existiram foram considerados "parte do trato". De outro lado, temos hoje manchas urbanas em lugares ambientalmente vulneráveis. E não só encostas. São fundos de vales, margens de rios, sopés de montanhas. 


Muitas das nossas cidades serranas estão situadas em áreas assim.
 
Seria ingênuo às raias do ridículo defendermos a retirada destas cidades centenárias. E ainda por cima, é imperativo considerarmos que as cidades mudam, independente das questões ambientais. Mudam porque são vivas, transformam-se. Mas é preciso considerar que muitos bairros e assentamentos estão, sim, em áreas que podem ser inundadas. A tecnologia hoje nos permite ações emergenciais e preventivas. Desde o devido planejamento da ocupação do solo, até serviços meteorológicos mais eficientes e planos de evacuação que permitam salvar vidas.


Quanto à possibilidade de reconstrução das áreas atingidas, eu concordo com a Ana Laura. A cidade, como a vida, muda constantemente. Não dá para cristalizar. Vida é movimento, engessar é matar. Aquele haras, aquele hotel, aquele restaurante nem sempre serão mantidos. Eles vivem em nossa memória, e podem pautar diretrizes de desenvolvimento que preservem escalas, ambientes, paisagens. As referências são fundamentais. Milton Santos já defendia que a identidade está intrinsecamente ligada ao território, e o urbanista deve ter isto em mente sempre. Mas a reconstrução não deve ser encarada necessariamente ou dogmaticamente como reprodução de uma pré-existência. Isso seria um recurso teatral, cenográfico. É preciso olhar para a frente. Incorporar a experiência, o aprendizado, e se reinventar. Com respeito - ao ambiente, à memória, e com delicadeza. Mas com criativadade. Caso contrário, construiremos cidades-espectro, e certamente não é isso que desejamos.


Beijos, Ana Paula