domingo, 19 de junho de 2011

SENHORA DO TEMPO. ABASTECENDO-NOS...

Por Vera Guimarães

Minha mãe nasceu e foi criada na roça. Ela viveu, nas primeiras décadas do século XX, no mundo da quase absoluta auto-suficiência das fazendas. Em cada uma dessas unidades se produzia de tudo. A alimentação vinha das lavouras, do gado, dos pequenos animais criados no quintal, das hortas, dos pomares. Do leite tirado nos currais se faziam os queijos, os requeijões morenos, a manteiga, os doces. Os cobertores e parte do vestuário vinham do algodão plantado por ali mesmo ou do pelo das ovelhas, tudo fiado, cardado, tingido, tecido e costurado em casa. Várias das fazendas tinham seu próprio engenho, onde se beneficiava a cana, do que resultavam açúcar, rapaduras, aguardentes. Quase todas tinham forjas, olarias, serrarias, carpintarias e marcenarias, que tornavam possível a construção de casas, currais, paióis e tulhas, a fabricação de carros-de-boi, charretes e carroças, a criação, desenvolvimento e manutenção de instrumentos, máquinas e ferramentas. 

Quando a família se mudou para a cidade, no final de década de 1930, entramos em outra era, a era do dinheiro em troca das mercadorias, ou das mercadorias em troca de dinheiro.

Para o abastecimento do básico, feijão, arroz, açúcar, batata e óleo, de que precisávamos em grande quantidade, já que minha mãe abriu uma pensão e também fornecia marmitas, havia os armazéns de secos e molhados, os atacadistas, galpões enormes e desprovidos de charme. Eu, mais nova e menos envolvida com as tarefas da casa, acompanhava minha mãe em todas as compras e bem que gostava de subir nas pilhas de sacas de gêneros, de ver o movimento de carregamento e descarregamento de caminhões e carroças, reparava nos enormes caixões de feijão mulato, feijão preto, feijão fradinho, feijão roxinho..., o arroz com casca, arroz pilado, apreciava o cheiro das réstias de cebola e alho. Ali se comprava em quantidades maiores, em sacas de 60 k ou latas de 20 litros.

Caso precisássemos de quantidades menores de algo, recorríamos às vendas, atraentes e curiosíssimas, onde se encontrava de tudo, para tudo, de todos os tamanhos, para todos os gostos. Mais ou menos como na imagem abaixo:


Comprávamos leite e manteiga em pequenas chácaras afastadas, e para chegar a elas atravessávamos pastos e pequenos córregos. (Inacreditável como o lugar dessas fazendinhas é hoje um centro urbano riscado de ruas e cheio de prédios e casas.) Ou também comprávamos o leite de vendedores que percorriam as ruas em carroças e o retiravam de dentro de latões com uma caneca de cabo longo.

Depois, numa fase mais moderna, desenvolveram um sistema em que o leite ficava dentro de recipiente hermético, enorme cilindro de metal com um litro de vidro invertido acoplado. Ver o leite subir até a marca de um litro e depois descer e sair pela torneira era um mistério insondável, assim como as vozes que chegavam pelo rádio.


Havia também o que chamávamos de fábrica de manteiga, verdadeiros empreendimentos de beneficiamento de leite que também atendiam o público no varejo. Uma dessas fábricas ficava na rua onde morávamos, num grande terreno em forma de L que abrigava pátio, usina de beneficiamento, venda, escritório e casa da família e tinha entrada por duas ruas. Para comprar manteiga, passávamos por uma área densamente arborizada com mangueiras, ameixeiras, laranjeiras e até um marmeleiro. Eu tinha sorte de ser amiga de uma das netas do dono da empresa, então às vezes atravessávamos o portão que ia dar na horta da casa da família. Ali eu me encantava com o jardim com um tanquinho no meio e canteiros de violetas, papoulas, dentes-de-leão, esporinhas, palmas-de-santa-rita, dálias, cravos, rosas. Dentro da casa caprichada eu me lembro ou não sei se forjei na imaginação um lustre com canutilhos pendentes. Mas tergiverso...

Ainda na nossa rua havia a fábrica de doces. Embora minha mãe fosse exímia em doces em geral e em frutas cristalizadas, às vezes lá comprávamos goiabada, marmelada, bananada. A fábrica se localizava em grande terreno, à frente do qual ficava a casa da família e eu também tinha a sorte de ser colega de um dos filhos. Eu adorava ir à fábrica, um ambiente úmido, quente e impregnado de cheiros doces, onde conseguia que me deixassem embalar barras de doces em papel celofane, selado em uma chapa quente. E gostava igualmente ou mais de entrar na casa rica, ensolarada, de pisos brilhantes e, principalmente, cheia de revistas em quadrinhos que lia avidamente, até mais do que quando saboreava os doces. Que saudade de Laura Jane e Tiquinho, Agostinho Mocho, Hortelino Trocaletra! Obrigada, Luis Carlos!

Embora nos quintais coubessem hortas e algumas fruteiras e sempre houvesse um galinheiro, a nova vida urbana, um maior intercâmbio com outras famílias e vizinhos, tudo isso acabava criando necessidade de outros artigos além daqueles a que estávamos habituados. Por exemplo, o macarrão, que não era tão comum na vida rural, tornou-se obrigatório com o novo hábito do ajantarado de domingo. E também começamos a nos familiarizar com novos legumes e frutas.  

Acompanhando minha mãe nas compras, na feira de barracas desmontáveis, escolhíamos frutas e legumes. Paradoxalmente, a maior variedade se encontrava nas feiras e mercados da cidade do que nas hortas e pomares da roça ou casa, onde praticamente só havia couve, chuchu e tomatinhos de cerca. Só de abóboras nessas feiras me lembro destas aqui: abóbora dágua, verde clarinho, pescoço comprido; abóbora de porco, no formato de uma bola de futebol americano, com gomos, rajada de cores indefinidas; moranga, aquela alaranjada, achatada, com gomos acentuados; mogango, verde-escuro rajado, também oval. Fico feliz que as feiras sobrevivem e estão vivas em praticamente todas as cidades do planeta, seja 1º., 2º., ou 3º. mundo. A imagem abaixo parece recente:


Se não íamos à feira ou ao mercadão, que sucedeu as feiras, podíamos esperar pela passagem das carroças dos verdureiros, geralmente imigrantes, fosse o português Artur Castanheira, ou o italiano Martinelli, com seus legumes, frutas e verduras fresquinhos, ainda molhados e cheirando a terra. São memoráveis os tomates-maçã, grandes, vermelhos e saborosos, produzidos pelo Artur.

Também vinham até nossas casas os fornecedores de peixe e, principalmente, os vendedores de dobradinha, ou fato, ou bucho. Para quem não conhece, trata-se do estômago do bovino, peça de cor amanteigada, de texturas várias. Encontrei aqui ótimas descrições e fotos do que se trata. Chegavam à nossa porta senhoras trazendo à cabeça latas de 20 litros cheias dessas peças molengas que, confesso, não eram bonitas nem cheirosas, mas que, trabalhadas pela habilidade de minha mãe, se transformavam em ensopado delicioso, que eu saboreava com gosto e ainda me divertia escolhendo as peças diferentes, as fininhas, as mais grossas, as em forma de favo de abelha.  
As padarias, além de terem lojas, também punham na rua carroças com seus produtos. No meio da tarde, primeiro escutávamos o patear do burro no calçamento de pedra. Aí víamos a carroça chegando, o condutor à frente, na parte de trás a enorme caixa abaulada de folha de flandres. Ao abrir essa caixa, éramos inundados pelo cheiro quente do pão novinho e crocante, pelo aroma de canela que emanava das roscas, pelo cheiro inconfundível de cravo e erva-doce nas broas e biscoitos. Ah, saborear tudo isso no meio da tarde, com café quentinho! Todos os sentidos ativados em poucos minutos!

A sequência da história todos conhecemos. Chegaram os supermercados e sua irretocável e inegável praticidade: tudo ao mesmo tempo agora. Sem mágoa. Só saudade.