domingo, 12 de junho de 2011

SENHORA DO TEMPO. O MOLHO

Por Sealvia

Foto: Google Images
De todas as terras imaginárias que eu visitava em sonho, quando criança, a minha preferida era a Terra das Portas. Ela podia não ser tão colorida como o Mundo dos Brinquedos que Eu Nunca Tive, nem tão divertida como o País das Minhas Maravilhas Atrás do Espelho ou coisa assim, mas era a mais desafiadora.


Conheci a tal Terra na noite de um dia em que me mudei para uma nova casa. A família ainda estava desembarcando e desempacotando todo o nosso mundo e eu apenas me ocupava em visitar cada cômodo em expedição exploratória. Entrava nos armários, olhava embaixo de móveis e atrás de portas em busca de tesouros escondidos ou perdidos pelos outros moradores. Encontrei uma velha escrivaninha abandonada num dos quartos e com a certeza de perdigueiro de que encontraria ali alguma pista do passado, abri cuidadosamente cada uma de suas gavetas.

Foi na terceira que encontrei. Eram muitas, de todos os tipos, cores e tamanhos possíveis, muitos mais do que todos os que eu conhecia em minha curta vida. Quantas portas para tantas chaves! E quais seriam? Enchi uma das mãos com algumas e comecei a testá-las. Meia hora e muitas portas, cadeados e fechaduras depois eu estava tão intrigada quanto antes, pois nenhuma delas foi capaz sequer de entrar nas fechaduras a disposição.

Os palpites começaram a brotar entre a família, todos com explicações bem razoáveis para a quantidade impressionante de chaves. Alguém sugeriu que deveria ser uma coleção e outra pessoa retrucou que ninguém coleciona chaves, ao que uma terceira proclamou que existe colecionador de tudo nessa vida.


Eu escolhi pensar que todas aquelas chaves tinham vindo parar na minha nova casa por algum motivo e que talvez eu estivesse destinada a ser a guardiã daquele molho que enchia uma gaveta, para que um dia eu pudesse encontrar alguma porta trancada para a qual eu tivesse a chave correspondente.


Naquela mesma noite então, sonhei com o mundo estranho e curioso onde eu finalmente encontrava razão para a existência das chaves. Nele, sempre que havia uma situação sem solução, havia também uma porta a ser aberta e com uma daquelas chaves. Nos sonhos calmos elas abriam-se para jardins floridos, paisagens pastorais e agradáveis. Nos pesadelos elas emperravam-se, suas fechaduras enferrujavam, seus trincos saíam inteiros ao mais leve toque e elas recusavam-se a abrir. E é claro, também havia as portas que estavam sempre abertas.


Tornou-se praticamente uma rotina, um exercício de (in)consciência visitar aquela terra em busca de perguntas para as minhas respostas, portas para minhas chaves, e apaguei propositalmente a luz que se acendeu em minha mente no dia em que mudei pra minha terceira casa depois de casada e pra onde levei um molho com todas as chaves das outras duas.