domingo, 8 de julho de 2012

SENHORA DO TEMPO: CONTARES SOBRE ZÉ MENINO TOLOSA

Marli Tolosa




Zé Menino Tolosa com sua filha, Marli, ao colo


Bem cedinho, dia mal aberto, horizonte cor-de-rosa e berilo. 
Friorento e mal agasalhado o menino com cara de índio, alegrinho e buliçoso entregava o pão de porta em porta, levados numa cesta de vime fixado na bicicleta. 

Ele assobiava pra espantar os fantasmas das suas mágoas. Pois é, ele as tinha. A mãe morrera, ficara sob a guarda do pai severíssimo, justo porém duríssimo que embora não ministrasse castigos físicos era um crítico cruel e tornava a vida insuportável, mantendo com os filhos a disciplina férrea que ele mesmo recebera dos jesuítas. 

Entregar o pão para ganhar o pão, era a menor das penas que a vida imputara àquele menino que mal completara 12 anos e já se sentia absolutamente dono do seu destino. 
Além disso tinha todo o salário para si e ele adorava roupas. A padaria lhe fornecia cama e refeições. 

Dormia em "prateleiras" de concreto (beliches de três andares, ligados à parede) com pijamas e lençóis feitos dos sacos de farinha e de açúcar (ninguém ia ver mesmo) que a padaria fornecia de graça. 
Sempre havia um padeiro casado que pedia à sua mulher que fizesse pijamas para o órfão da vez. Daquela vez era ele. 

Havia um ganho secundário nesse trabalho: à noite, enquanto ouvia a arenga dos padeiros e ria das suas anedotas, ele cortava cuidadosamente algumas palhas, justinho no feitio das tampas das garrafas de leite e fazia os cordões para amarrar. Era como se usava naquele tempo. 
Conhecedor do trajeto do leiteiro ele cumpria seu próprio roteiro dando um jeito pro leite ter sido entregue antes do pão. 

Manhãzinha, as ruas vazias, ele abria a garrafa deixada em algumas casas, (que ele variava sempre, pra não se denunciar) e tomava no gargalo um gole de leite fechando em seguida com a palha e o cordão adrede preparados. 

Os padeiros perceberam seu expediente. Um dia um deles pediu ao garoto que pusesse um papelzinho na caixa do pão de uma certa casa de uma determinada rua. " Não deixe ninguém ver!" Foi a ordem. 
Ele tentou protestar mas os demais padeiros mostraram que se ele tinha técnica e sutileza pra tomar o leite ele seria bem capaz de cumprir essa nova tarefa. E assim ele fez. 

Não por elegância, mas por timidez, não perguntou o que estava escrito nos recados lacrados. Pensou que estava deixando poesias e carinhos pra alguma bonita cabocla. 

Depois o número de bilhetinhos que ele teve que entregar e a variedade de endereços, fez com que o José Menino Tolosa entendesse que havia se tornado um mensageiro da Revolução Constitucionalista. 

"Quando se sente bater, no peito heroica pancada, deixa-se a folha dobrada, enquanto se vai morrer." 

Viu, então,  que alguns padeiros pararam de deixar a folha dobrada. 

Ele parou de tomar o leite alheio. Menos como um comportamento maduro e sim como uma forma de honrar os colegas mortos.




Na garagem de sua casa, no bairro do Jabaquara