Eloisa Helena Maranhão.
Para os que se recusam a se iludir. Ou, mesmo sem recusa, não conseguem se enganar.
“Desilusão, desilusão, danço eu, dança você,
na dança da solidão.” (Paulinho da Viola)
Eram inconquistáveis. Nem música adiantava. Tinha cantado algumas para eles, puxava da memória as melodias mais macias, as palavras mais sedutoras, e nada. Sentava e cantava, o coração naquela expectativa de resposta.
Se lembra da fogueira
Se lembra do balão
Se lembra dos luares, do sertão...
Não, andróides não devem recordar esse tipo de lembrança, mesmo os de última geração. Procurava outra música.
Images of broken light which dance before me like a million eyes
They call me on and on across the universe
Thoughts meander like a restless wind inside a letter box
Theys tumble blindly as they make their way across the universe
Jai guru deva. Om.
Nothing’s gonna change my world…
Não adiantou. Nem sax tocando Us and Them, nem Vangelis; eram imunes à música, também.
Olhava para eles de soslaio, eles encarando-a muito direta e friamente como “perdeu alguma coisa aqui?”. Desviava o olhar, era insustentável o que via dentro daqueles dois pares de olhos tão claros, tão sombrios. De tanta luz refletida. Só entendia a acusação, a indiferença e um “vocês hão de me pagar”. Não sabia qual era a dívida, mas entendia a cobrança.
E se acenasse, pagasse o mico de acenar, rir para eles, jogar beijo, piscar, implorar amizade, mas assim tão diretamente espantaria os dois, melhor tentar aproximação lateral, continuar na conquista, mesmo que levasse milênios para isso. Tinha tempo de sobra. Tempo era tudo que restava, sempre.
Resolveu contar uma história, voz baixa, mas que desse para ouvir, passou a manhã se preparando, e à tardinha, quando a respiração fica mais lenta e tudo que queremos são histórias, começou.
Conta-se que quando se miraram, a jangadeira e o pirata, jangada e caravela ladeando-se, numa dança sobre as águas, numa sedução que já não se lembravam como fazia, conta-se que o sol cerrou os olhos, deixando espaço para que se mirassem sem se cegar.
A noite desceu ali mesmo, sobre o mar antes avermelhado, e fez-se grande silêncio, carregado de significados. Nos olhos dela ele viu a lua, e ela sonhou estrelas nos cabelos e barba do pirata, e decidiu que singraria os sete mares com ele.
Pois agora, mesmo havendo sol quente, sede nunca saciada, o suor escorrendo salgado na boca seca, a pele ressecando a cada dia, agora havia lua e estrelas. E a noite saberia se fazer para os dois.
Conta-se que ainda hoje, para quem saiba ver, na hora da penumbra, quando o sol desce as cortinas e a noite começa a subir, ainda se vê jangada e caravela ladeando-se no silêncio do Mar Oceano.
Também não se deixavam enredar pelas palavras. As teias que tentava tecer não serviam de laços, nem por momentos.
Pareciam tão seguros, indiferentes a tudo de fora, centrados em si mesmos, só ela era estranha, forasteira, sentia o sol ardendo a chuva gelada, tremia de frio, de calor, de solidão, era só ela?
Sentia uma inveja afiada daquele vínculo entre os dois, aquela lealdade e união que só os condenados e absolutamente desenraizados podem ter, estrangeiros em terra hostil. Um era tudo que restava ao outro. Melhor ficarem juntos.
Começou a inventar brincadeiras, fabricava balõezinhos coloridos, enchia de ar quente de fogueira, e soltava, o céu noturno ficava repleto deles, no lugar das estrelas que já não podiam enxergar, eram balões gritando socorro nas correntes de vento. Girava centenas de piões prateados dourados furta-cor, vai que andróides gostam de cores metálicas, futuristas, punha pra rodar e ficava horas olhando. Tempo era tudo que restava. Pulava corda na frente deles até cair de exaustão. Nem, também.
Um dia resolveu fazer comida para eles. Devia ser doce. E cremoso. Com café e chocolate. Acordou e começou a preparar, mãos pacientes de cozinheira alquimista. Cheiros cores sabores.
Ingredientes:
200 g de biscoitos champagne
3 ovos
250 g de queijo mascarpone
75 g de açúcar
50 g de chocolate amargo em pó
½ xícara (de café) de rum
3 xícaras (de café) de café
Bater as claras em neve. Juntar o queijo mascarpone, misturando delicadamente. Em seguida, acrescentar as gemas, o rum e o açúcar, obtendo um creme denso e homogêneo.
Fazer o café e deixar esfriar. Banhar os biscoitos nesse café, um por um, e colocar numa forma de cerâmica, feita de argila apanhada de manhã nos rios, úmida e fria, e cozida ao meio dia num forno bem quente.
Quando tiver a primeira camada de biscoitos completa, cobrir com o creme, fazendo camadas de creme e biscoitos. A última camada deve ser de creme. Pulverizar a superfície com o chocolate em pó.
Levar a repousar por duas horas antes de servir.
Bateu chantilly fresco perfumado com vagem de baunilha sem sementes, quando começou a cair a noite e esfriar, para colocar em cima. Duendes costumam vir de noite se alimentar de papa de aveia. Vai que andróides também se atrairiam por aquele doce.
Não vieram. Ela dormiu de tanto cansaço e sonhou.
Estavam em cima de uma montanha tão alta, imensa, com neve no pico, solitários na companhia que faziam um ao outro, olhando o horizonte lá de cima. Ela começou a construir uma escada na encosta da montanha, degrau por degrau, uma torre de babel que a levasse a eles, mas escorregava, respirava com dificuldades conforme subia, o coração disparava, não ia agüentar. Precisava tanto daquele contato, um olhar, uma palavra, um sorriso, não tinha nada, nem a viam ali, eles eram eles e deles. Ela não existia.
Quando acordou, cheia de gemidos enroscados, viu que estavam dormindo, lambuzados do doce que tinham roubado durante o sonho dela.
Resolveu radicalizar. Ficava deitada na linha do trem, de olhos fechados, embaixo do sol. Ou andando por ela, equilibrando nos trilhos. Se o trem viesse eles haveriam de avisá-la, dar um grito, até andróides aprendem a amar a vida. Avisaram nada. O trem também nunca veio.
Uma manhã tudo escureceu. Nuvens cinzas negras, ia cair chuva forte. Construiu uma cabana, deixou espaço para eles, um caramanchão bem seguro, passou o dia erguendo paus, cobrindo telhado, fechando fendas. Entrou lá quando a chuva começou, e eles ao relento. Nem aí. Ensopados, lado a lado, impassíveis, esperando a chuva passar. Gelados.
Amanheceram pingando água da chuva, dependurados de ponta-cabeça numa árvore, como morcegos cegos, braços cruzados, deixando secar. Ela dependurou-se, também. Braços cruzados. Era dia verdinho, recém-nascido da chuva anterior, sol novinho, quase recém-nascido da explosão primordial. Deu uma sensação de que aquele era seu dia, ia enfim conseguir contato.
Ficou ali de ponta-cabeça, cantando mandingas, desejando e esperando.
Foi a primeira vez que ouviu a voz de um deles.
Hora de morrer, Roy declarou em voz alta. Caíram dissolvidos, os dois.
Ela continua dependurada na árvore.