sexta-feira, 11 de maio de 2012

84, CHARING CROSS




Apresentando Elaine Pereira, a nova colunista do PF

Como falar de Elaine? Posso começar pelo seu amor imenso pela vida. Elaine não molha os pezinhos na beira da piscina - ela se joga de cabeça. Longe de parecer porra-louquice, isso é de uma sabedoria antiga. Carpe diem, diriam os mais sábios do que eu. Elaine é inteira. Inteira no amor pela filha, que cresce com um exemplo ímpar de mulher e mãe, inteira na felicidade, inteira na dor. E, por ser inteira, é grande, e nada exagera ou exclui.
E aqui, no Primeira Fonte, assumindo a coluna 84, Charing Cross, ela vai nos contar de sua vida, de suas viagens pelo mundo - trazendo o olhar límpido e a palavra exata. Se preparem - ela sabe o que faz.


Telinha Cavalcanti


Datas, Lugares

Elaine Pereira


Eu sou mãe, tenho mãe, tive vó até um bom tempo. Mas não vou falar de Dia das Mães. Eu odeio todos os Dias de alguma coisa. Nem vou entrar no mérito do comércio, mas acho que é porque sou mesmo uma pessoa horrorosa. As homenagens me dão canseira e acho tudo muito chato. Eu cumpro a tabela, porque vivo em sociedade, portanto tenho que ao menos parecer normal.

Porém, frequentemente sopram ares familiares ao meu redor. Eu sou primeira filha, primeira neta, sobrinha, etc., a mais estragada e no entanto a que tem um senso de amor familiar mais depurado, com toda modéstia.

Meu avô nasceu na Ilha da Madeira, em Portugal e muito pouco convivi com ele. Quando ele se foi eu tinha sete anos e ele foi longe de ser o avô que meu pai é para minha filha. Sisudo, eu nem me lembro da voz dele, só guardo com amor o anel de ônix que ele me trouxe quando foi ver pela última vez a terra mãe, já de avião, o que era o luxo dos luxos nos idos de 1970.

Na verdade eu tive mais contato com a minha tia Paulina, irmã dele, apesar de nunca tê-la visto. Nós nos correspondíamos. Sim. Carta. Papel. Caneta. Ir ao correio. Era uma emoção para mim, sabe-se lá para ela. Os primos que vinham de Portugal sempre traziam as recomendações de saber como eu estava.

Eu fui a Portugal com vinte e poucos anos e não a visitei. Com vinte e poucos anos a gente acha que tem coisas importantíssimas para fazer em uma viagem e acaba deixando de lado o que interessa, mas é assim. Pouco tempo depois ela se foi também, e meu primo disse, perdeste a oportunidade de vê-la, ela queria tanto.

Há um mês atrás, depois de muito viver, conviver com família, ganhar membros novos, perder insubstituíveis, fiz o caminho inverso ao do meu avô no começo do século. Fui de navio à Ilha da Madeira. Ao chegar, perdida, com um papelzinho com meio endereço, porque na época em que minha tia me escrevia a aldeia era tão pequena que todo mundo sabia quem ela era, nem sabia se queria ir procurar, com medo da decepção de não achar.

Mas os anjos me mandaram o seu Virgílio, o motorista de táxi. Ele não só me levou à Ponta do Sol como foi mostrando tudo o que tinha até lá. Bananeiras a perder de vista. Mas ao chegarmos a mini aldeia era um bairro inteiro e não se tinha como saber onde nascera meu avô e onde morara a Tia Paulina. E novamente os anjos me deram vontade de tomar café e eu fui tomar café no café do marido da afilhada da Tia Paulina. Como foi isso? Sei lá, começamos a falar de nomes, sobrenomes, ele teve um clique e disse – mas é a madrinha da minha mulher!



Lá fui eu para a casa da tia Paulina e de repente o bairro todo sabia quem ela era e onde era a casa, e eu fui lá, coração aos pulos, passando pelas ruelas, casinhas, casonas, bananeiras sem fim (a Ilha da Madeira produz bananas pacas) e chego em uma casa com uma senhorinha lavando o quintal. “A senhora sabe onde era a cada da D. Paulina”. “Ó, pá. Claro que sei. É esta aqui.” Depois das explicações de quem eu era, vi a casa toda da minha tia Paulina das cartas de 35 anos atrás, pus as mãos nas paredes e ainda vi uma foto que a Dona Amália, a nova proprietária guardava com carinho – uma foto igualzinha a uma que eu tenho comigo, do meu avô bem pequeno com os irmãos.



Eu realmente sou uma ovelha negra. Não compareço a aniversários, não comemoro datas, não visito bebês e doentes, sou péssima anfitriã. Mas voltar à casa onde meu avô nasceu foi uma coisa que não vou saber descrever. É um sentimento maior que família, é como se eu estivesse, por exemplo, em Marte, e visse um outro terráqueo. É a sensação que a gente tem quando ouve um brasileiro falando em outro país. Fazemos parte. Os genes fervilham dentro do corpo. O coração reconhece o lugar onde nunca estivemos fisicamente. Eu fiquei lá tocando, sentindo os cheiros, o sol, vendo o mar através das bananeiras e imaginando que parte de mim ficou lá sem eu nunca ter ido antes e que eu estava reencontrando.

As fotos e a história causaram furor na família aqui no Brasil, especialmente no meu pai. A mim foi acrescentado um sentimento que eu ainda não tinha catalogado e nem sei o nome. Mas preenche tudo, corpo, cabeça, coração.