domingo, 6 de maio de 2012

SENHORA DO TEMPO - RELATO DE AMOR



Por Katia Mazzi



1) Quando era criança olhava pro céu quase todas as noites, com ou sem estrelas. Nunca perguntei nada, nem pro pai do Céu, nem pra mamãe. Eu sentia a grandiosidade e a imensidão na qual estava inserida e a vontade de deitar no chão do quintal, com os braços e pernas abertos, se consumava frequentemente, pra não dizer que me consumia. Olhando pro anil, o olhar dormia e sonhava com a mesma noite. Eu era o universo.

2) Internalizei essa questão e hoje ainda lembro de como olhava o céu. Mesmo reprimindo o ato de deitar num espaço qualquer, sinto-me e vejo-me dentro da escuridão clarificada. Sei quem sou e tudo parece maior que o próprio tempo.

3) Lembro do amor de minha mãe. Estava ela sempre indo de uma parte à outra de nossa casa, e lavava roupa, e fazia comida, e regava plantas e nos levava à escola. Tenho um irmão e não sei se ele olhava tanto pro céu como eu. Essas coisas não se percebem assim.

4) Jogava bola como todo menino sabe jogar e não me deixava brincar com seus amigos, salvo quando queria fazer gols e, então, estipulava que eu seria a goleira do time adversário. O cara é esperto.

5) Tento lembrar dos carinhos da maravilhosa mamãe. Eram diferentes. Eram carinhos que penteavam os cabelos, vestiam-me roupas. Mas aquele olhar eu jamais esquecerei, sempre dentro dos meus. Parecia que aquele par de glóbulos escuros e saltados sabiam de tudo, do amor e da dor. 

6) Adorava ouvir seu comando de voz, "vamos". Aquele som de fato movia-me e eu sentia uma segurança tão concreta, só de estar ao seu lado, indo, segurando sua mão e indo.

7) Também não apanhei e as poucas broncas foram manifestas pelo mesmo olhar, um tanto mais severo. Eu ressentia e ficava pelo chão, na tristeza abismal por ter magoado alguém que amava e admirava, quase sem falar. 

8) Pra que falar? Há coisas que são tão reais que mal precisam de palavrórios. E foi assim que aprendi a amar, sem precisar falar do amor mas sendo apenas o amor personificado.

9) Tinha medo quando ia dormir. Uma sensação de perda me tomava, mesmo depois de ser beijada docemente por lábios amorosos. E acordava como um sol, movida pelo mesmo lábio e beijo, pela mesma fada de um conto qualquer. Felicidade existe.

10) Mas perdi mamãe.

11) Viagens faziam-me mal, e eu nunca soube explicar esse contratempo. Sair de casa era sair da rotina e enjoava, enjoava.

12) As reclamações escolares frequentes, as notas sofridas, a falta de atenção e pouco assento. Dificilmente me acostumaria àquela ideia chata, de fazer uma coisa por vez, e sentada. Ninguém sabia ainda sobre o TDAH e mamãe dizia à professora que eu só melhoraria se fosse tratada com amor. Eu confirmava, balançando a cabeça.

13) De novo esse medo do escuro. Precisava de uma réstia de luz qualquer, um poste de rua que não estivesse com a lâmpada queimada. Mesmo assim, pensava na ausência daquela linda mãe e não imaginava nem dodói com sangue, nem dor tão pungente.

14) Se os olhos dela não se movessem mais, eu também não. E se os beijos me faltassem nas manhãs-tardes-noites, eu não mais.

15) Não aconteceu assim e eu jamais poderia supor o quanto aprenderia sobre o verdadeiro amor. Que ainda me beija e pega a minha mão e me penteia e veste. Enfim, caminho sem medo do escuro. E quando olho pro céu, com ou sem estrelas, sorrio e ainda ouço: "Vamos ?"