segunda-feira, 28 de maio de 2012

Sobre 'A menor mulher do mundo', conto de Clarice Lispector


Dade Amorim



O traço que marca o texto de Clarice Lispector, relativamente aos de outros escritores contemporâneos, é o desassombro, que pode ser entendido como poesia em estado bruto ou como inconvencionalismo total. Pessoalmente, prefiro a primeira hipótese.
Primeiro porque, entre todas as definições conhecidas de poesia, prefiro aquela que não poupa os sentimentos ditos nobres ou delicados, muito mais indicados para uso interno – em relações interpessoais, amorosas ou familiares – do que para a literatura ou a criação artística em geral. Segundo porque sua franqueza crua e direta, capaz de abalar convenções e convicções intocáveis, condiz com a poesia, que é também um inconvencionalismo total.
No caso do conto em questão, a poesia e a personalidade literária da autora ficam tão claras que tornam o texto quase paradigmático do uso das palavras e da visão de mundo em Clarice. O único modo realmente poético de falar dessa mulher que mais parece um macaco é expor o efeito que sua figura e sua mera existência causam nas pessoas ditas civilizadas, e esse efeito pode ser um susto, uma estranheza expressa sob a forma de enternecimento/piedade, ludicidade, fuga ou até repulsa. O fato de a mulher ser uma miniatura perfeita e ainda por cima estar grávida, além de ser surpreendente, abre um espaço para a ternura e ao mesmo tempo incomoda as pessoas, reforçando o sentimento de estranheza e um obscuro temor: quem a vê, pressente alguma ligação com ela, compartilha um pouco de sua natureza curiosa e repulsiva, que denuncia muito abertamente o lado grotesco de cada um, que o narcisismo repudia e se nega a reconhecer.
As reações que o conto descreve ilustram bem o resultado desses sentimentos.
O explorador, habituado às extravagâncias da natureza, sublima a figurinha que se coça em sua presença “onde uma pessoa não se coça” e desvia os olhos “como se estivesse recebendo o mais alto prêmio de castidade”.
Há a “perversa ternura” da senhora que nunca se deveria deixar que chegasse perto de Pequena Flor, como o explorador nomeou a mulher-miniatura. Porque, como diz Clarice, “Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar o carinho.” As palavras, que parecem expressar enternecimento, na prática, podem falar de outra coisa. Como explicar por exemplo os maus tratos e maldades praticadas contra seres tão enternecedores como crianças ou animais indefesos? Como interpretar a facilidade com que sentimentos amorosos se metamorfoseiam em crueldade e violência?
Reduzir a mulherzinha a boneca é outro jeito de tomar o mal-estar nas rédeas, assim como fizeram as meninas do internato, que esconderam o cadáver da colega para brincar com ela, exercendo seu instinto maternal mais feroz – e negando a morte. Uma outra velha senhora sentencia que “Deus sabe o que faz”, o que poderia ser traduzido por “podemos ficar tranquilos, a culpa de sua existência não nos cabe e não temos nada com isso”.
Nesse texto, que fala de amor e ódio como águas do mesmo rio, Clarice consegue extrair das palavras todos os matizes, o lado obscuro e o mais glorioso da vida, tantas vezes misturados de tal modo que não chegamos a entendê-los à luz da razão – essa senhora pretensiosa, mas inepta para ir além da mera teoria.

Imagem E. Manet. Femme nue se coiffant.