Uma linda folha de papel de presente dá vontade de
presentear alguém. Parece um pouco com o que se convencionou chamar de vocação:
a tendência que motiva uma pessoa a fazer o necessário para realizar seu
desejo.
Houve tempo em que a palavra era entendida de modo mais
radical; dizer que alguém tinha vocação pra isso ou aquilo devia ser entendido
como um chamado irresistível vindo não se sabe bem de onde. Até do céu, no caso
da vocação religiosa. Hoje é ponto pacífico que qualquer vocação dispensa
apelos transcendentais: a coisa vem de dentro do intrincado individual das
características genéticas e adquiridas.
Um chamado divino dificilmente explicaria a quantidade cada
vez maior de padres, pastores e freiras que um dia se cansam da vida dedicada
exclusivamente ao Senhor e à igreja de que fazem parte. A vocação deles foi um
engano? E – muito pior que isso – quando padres, pastores ou freiras se deixam
levar pela tentação mais hedionda e, em vez de apascentar suas ovelhinhas como
se esperava que fizessem, as usam como pasto? Por que esses religiosos deixam
de agir como líderes espirituais para trair a confiança de seus seguidores? Humano,
demasiadamente humano.
Vocação para o magistério é outra expressão que soa meio
grandiosa, diante das dificuldades da carreira – salários baixíssimos,
condições precárias de trabalho, clientelas difíceis de lidar. Os próprios
alunos criam obstáculos ao trabalho do professor, tanto nas escolas públicas
quanto nas particulares: uns ameaçam pelo potencial agressivo dos podres poderes
a que estão às vezes muito ligados; para outros, nas escolas “da Zelite”, o
aluno sempre tem razão, porque sem ele não haveria recursos para manter a
escola, pagar salários e obter lucro. E o professor vê seus lindos conceitos relegados
a segundo ou quarto plano por conta de interesses, digamos, bem mais concretos.
Nas carreiras liberais ou artísticas, pode haver grandes
compensações, talentos reconhecidos em áreas diversas, políticos realmente
íntegros e dedicados ao bem comum (são raros, mas existem). Mas as frustrações
são mais frequentes. Depois de todos os esforços e investimentos, se a carreira
não deslancha, é preciso desistir do caminho escolhido e suportar o tédio de um
trabalho que nada tem a ver com o desejo de quem sonhou muito alto ou, como é
comum, ficar patinando na sombra sem o reconhecimento que se imaginava
conseguir. Numa sociedade que sonha continuamente com a fama e o sucesso, pode
ser deprimente.
Um dos exemplos mais gritantes de fracasso que se conhece
foi Vincent Van Gogh, que viveu à custa do irmão generoso sem conseguir vender
um quadro, enquanto realizava uma das obras mais grandiosas de que se tem
notícia nas artes plásticas de todos os tempos. Tomara que exista vida depois
da morte, para que ele veja o tamanho de seu triunfo. Não poucos nomes famosos
tiveram destino semelhante ou sofreram limitações que os impediam de trabalhar:
Beethoven ficou surdo; Kafka, sempre enredado em seus labirintos de desespero e
depressão; nosso Aleijadinho, trabalhando mesmo com o corpo deteriorado pela
hanseníase que o devorou em
vida. Gente que tentou e conseguiu ir além do que se pode
esperar de um ser humano, como Nietzsche, Galileu e tantos mártires de origens
e naturezas diversas, provam o quanto é temerário ignorar os poderosos e ousar
ir além da mentalidade de seu tempo.
Vocação não é tudo: é só o papel bonito, que dá vontade de
embrulhar um presente. Mas nem sempre se encontra ou se pode comprar um
presente à altura do papel. Mais importantes são a persistência, a tolerância
diante dos fracassos eventuais, saúde e realismo para contornar as dificuldades
e a incompreensão. Mesmo sem grandes glórias, resta o papel bonito para
contemplar, renovar o sonho e proteger a auto-estima.