segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Tudo e mais um pouco sobre Clarice

Por Dade Amorim


Moser, Benjamin. Clarice, uma biografia. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Cosacnaify, 2009. 647p.

Levando em conta os acontecimentos traumáticos que atingiram sua família, em Tchechelnik, na Ucrânia, a vida de Clarice Lispector começou praticamente no inferno. Ainda bebê, a futura escritora mais famosa do Brasil não teria como entender o que estava acontecendo a sua volta. Mas a guerra e, pior que tudo, o desespero da família judia, aterrorizada pela perseguição nazista, além da quase impossiblidade de conseguir um trabalho razoavelmente bem remunerado, certamente afetaram suas filhas. A angústia e o medo os acompanhavam durante todo o tempo em que permaneceram na Europa, fugindo e sofrendo violências, das quais a pior de todas, o estupro praticado contra Mania, sua mãe, por soldados russos, teria consequências funestas para sua saúde que a levariam à morte, já em Recife, no Brasil, quando a filha mais nova tinha oito anos.
Embora Nádia Battella Gotlib, outra biógrafa de Clarice, não confirme o episódio, Benjamin Moser parece não ter dúvidas a esse respeito. O início do livro mantém a atmosfera pesada por todo o primeiro capítulo, impregnado do terror e da desesperança total que atormentavam aquela gente das pequenas cidades de população predominantemente judia. Prisões, mortes, torturas e fugas quase sempre malsucedidas vão acontecendo sem cessar, num texto dramático que provavelmente pretende preparar o leitor para entender melhor a personalidade da biografada. De fato, o traço existencialista e o fenomenologismo hamiltoniano* que marcam a obra de Clarice ficam bem mais compreensíveis se os ligamos à história de vida da escritora, pouco preocupada com teorias e formalidades.
Afora isso, Moser faz um apanhado histórico bem desenvolvido das diferentes fases da vida de Clarice. Ao background do tormento nazista, em sua terra natal, vão se sucedendo a política, os regimes e os costumes dos lugares por onde ela passou e que ele visitou para a pesquisa prévia. Assim, lugarejos e aldeias da Ucrânia e da Europa dão lugar a notícias de outras terras, até chegar ao Brasil, onde os Lispector se estabelecem, primeiro no Nordeste, em Maceió por algum tempo, depois no Recife, até a mudança para o Sudeste, no Rio de Janeiro, onde as meninas chegam já órfãs de mãe. Contam com o apoio decidido, embora precário do pai, que luta bravamente trabalhando como mascate, para que não lhes falte o essencial. As filhas têm consciência das potencialidades de Pinkhas Lispector – que mudou seu nome para Pedro, uma vez no Brasil – lamentam sua vida sofrida e a mediocridade de sua ocupação, e por isso mesmo reconhecem e valorizam o sacrifício desse pai que viaja sem parar por outras cidades, em busca de recursos para garantir o sustento e a formação delas.
Mas o estigma que os perseguia na Europa, embora atenuado, não os abandona de todo na nova terra. No Brasil, Getúlio Vargas joga em várias frentes, apoiando ora o nazifascismo, aqui representado pelos integralistas, ora os comunistas, dependendo de suas próprias conveniências, enquanto ilude o povo com um discurso populista. O povo o exalta e idolatra como “o pai dos pobres”, alcunha que inspirou seus críticos a criar a contrapartida “mãe dos ricos”. Moser descreve com detalhes o envolvimento de nomes como Samuel Wainer e Carlos Lacerda na crise que resultou no suicídio do presidente.
Outras crises, históricas ou pessoais, marcaram a vida de Clarice. As injunções vividas por conta do casamento com um diplomata, as constantes viagens, que a obrigavam a se abster do que mais lhe agradava e se afastar frequentemente do Brasil, onde queria viver; as características de cada localidade onde viveu, os amigos  e  as hostilidades com que precisou convier; o nascimento dos filhos e suas obrigações de embaixatriz, nada disso a impedia de continuar escrevendo, embora ela se obrigasse a priorizar os deveres de mãe e esposa. Para uma personalidade marcada pela ansiedade e por uma angústia que a aompanharam desde o final da adolescência, eram circunstâncias bem perturbadoras.
Moser discorre também, de modo eficiente, sobre o trabalho literário de Clarice, com citações numerosas dos críticos da época, dos biógrafos anteriores e dos correspondentes da autora. Sem falar nos inúmeros textos citados da própria autora, com que ele exemplifica suas afirmações e documenta algumas análises que desenvolve sobre ela.
Clarice, de B. Moser, é um livro indispensável a quem precisa ou deseja conhecer de perto Clarice Lispector. Moser é bem criativo e muito fluente. Mas é bom não embarcar sem alguma cautela no caudal de informações e detalhes que o autor oferece, e que atraem pela aparente verossimilhança. Aqui e ali, pode haver grãos de ficção muito bem assimilados ao texto, e que funcionam como um atrativo extra para o leitor desavisado. O que, no caso de Clarice, fica ainda mais difícil de distinguir do que realmente aconteceu.

* Segundo a filosofia de William Hamilton (1788-1856), a fenomenologia consiste na descrição imediata dos fatos e ocorrências psíquicas, anterior a qualquer explicação teórica.