Aspecto geral do Centro de Madri
No sábado, 7 de maio de deste ano, publicamos nessa coluna o início do relato de Ana Paula Medeiros sobre sua viagem a Madri que culmina com descrições sobre o Museu do Prado. Entre uma interrupção e outra, tivemos Alline, a titular da coluna, escrevendo sobre sua viagem maravilhosa ao dar à luz Norah.
É impressionante o sentimento de união de todos os que cobriram e ainda cobrem a licença maternidade de Alline nesta empresa onde a moeda de troca é o amor, a amizade, a admiração e o respeito que sentimos umas pelas outras. Hoje, retornamos com o fim do relato de Ana Paula sobre sua viagem à cidade espanhola.
Todas as fotos postadas fopram feitas pela autora do artigo. (quem desejar ler o início do artigo é só colocar o nome da autora do mesmo na caixa de pesquisa do Primeira Fonte)
No último artigo ela havia terminado assim:
"DIA 2, segunda-feira
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Amanhã, a outra rota do madrid-visión (eu comprei ticket válido para dois dias), com Puerta del Sol, Plaza Mayor e Palácio Real. Se der tempo, visito um dos museus da minha listinha, provavelmente o Reina Sofia, que é aqui do lado e que tem um anexo moderno que eu achei um show de arquitetura."
UM ANO QUAlQUER EM MADRID
precisamente em 2009
Por Ana Paula Medeiros
DIAS 3 e 4, terça e quarta-feira
Bom, da última vez que contei pra vocês da viagem, o D. estava gripado. No dia seguinte, terça-feira, que foi o dia 3 da viagem, ele amanheceu ótimo, e eu acordei muito pior. Nariz entupido, dor de garganta. E chovia, o dia todo, aquela chuvinha muito fina que não chega a impedir o passeio, mas também não justifica abrir o guarda-chuva. E esfriou. O dia todo eu andei pela cidade com temperaturas entre 4 e 7 graus. Mas andei. Foi o dia de ver a parte mais antiga.
Primeiro, eu fui ver a Plaza de Toros. Odeio touradas com toda força, quero mais que o touro mate todos os toureiros. Mas fui ver o lugar assim mesmo. É uma espécie de estádio, construído agora na década de 20, em estilo eclético de inspiração mourisca. Bem interessante, como arquitetura. Tirei fotos, tomei meu café com leite quentinho num boteco e peguei o metrô de volta.
Aliás, parênteses. Não tem nada pior que pegar o metrô cheio, com a calefação quase cremando os cidadãos, num dia tão frio. Ou você fica numa trabalheira de tira casaco, bota casaco, ou aguenta o calorão com cheiro de suor dentro do vagão, e toma o ar gelado na cara quando sai. Either way, não tem garganta que resista.
Eu ainda tinha um dia válido do meu ticket do ônibus de turismo, o Madrid Visión, e fui fazer o circuito 2, histórico. Foi um dia de fotografar menos e sorver mais a cidade. A língua também destravou de vez e eu fiquei soltinha, soltinha pelo espanhol. Pra dar uma idéia, eu botei os fonezinhos de ouvido no ônibus, pra acompanhar as explicações, e nem me dei conta de que estava ouvindo em espanhol.
Apesar da chuva, andei toda a Gran Via a pé, como me recomendou a Fal. Comprei bobagens, depois tomei o ônibus de novo, que dá a volta lá pros lados do Palácio Real. Vi um templo egício. Comassim, bial? É que no século XIX, arqueólogos espanhóis ajudaram numas escavações no Egito, e em reconhecimento e agradecimento, o governo egípcio DOOU para a Espanha um templo inteirinho, ou pelo menos o que sobrou dele. Não sei como foi transportado, mas tá lá, Templo de Debod. Na verdade, uma capela, pequeno mesmo para os padrões de templo que se faziam no Egito. Independente de achar esquisito esse negócio de desenraizar uma coisa que só faz sentido no seu lugar de origem e reconstruí-la não mais como arquitetura, mas como cenário em outro lugar, achei que a intervenção atual (essas coisas que se fazem para dar conforto e segurança, portas de vidro, climatização, câmeras, comunicação visual) foi muito cuidadosa, com a estrutura metálica independente e discreta, nem tocando a pedra. Pelo menos isso.
Templo de Debod
O conjunto Palácio Real, Jardins de Sabatini (vou procurar mais sobre esse arquiteto e paisagista barroco, achei um trabalho muito bonito. Padrãzinho bem francês de jardinagem, mas sem a escala excessivamente grandiosa dos franceses, uma delícia) e praças ao redor é fantástico, e eu fiquei encantada.
Chutei o pau da barraca e paguei o ingresso pra visitar o palácio todo, com direito a souvenir na lodjinha. Fal, a Catedral de Almudena tava em obras, mal deu pra ver. Mas eu fiz tudo que tava no roteirinho que você me mandou, tá?
Voltei cedo pro hotel e deixei pra bater perna na Plaza Mayor no dia seguinte, porque a gripe apertou e eu cheguei no quarto com febre e dor no corpo todo. Foi uma noite complicada.
Paseo de La Castela com Torres de Kio ao fundo
Ainda dá pra mais um dia?
No dia 4, já sem poder andar de grátis no onibusinho de turismo, e me sentindo melhor depois de deixar o própolis pra lá e encarar o cataflam pra poder dormir, peguei o metrô e saltei na Puerta del Sol, centrão mesmo. Pirei por duas ou três horas dentro do El Corte Inglês. a Naty é que sabe, eu fiquei mandando sms pra ela de lá. Comprei o trench coat mais viado pra Emma, cereja, com capuz e cintinho. Acho que ela só vai usar quando tiver com quase 1 aninho, mas eu não resisti. Ainda mais que, da mesma forma que com os casacões das vitrines daqui, aos 42 graus na Tijuca, lá também está nas lojas a coleção primavera-verão, vestidinhos vaporosos e camisetinhas regata, enquanto lá fora o têrmometro marca 10 graus e o povo anda de sobretudo pesado, cachecol de lã e luvas. Logo, o que sobra de roupas de inverno está em liquidação, e o trench coat da Emma foi uma pechincha (ai, não é de bom tom ficar dizendo pro presenteado quanto a gente pagou pelo presente, muito menos admitir que comprou no saldão e pagou barato. Putz, Naty, foi mal...).
Comprei batonzinho bourjois, creminho pras mãos e uma meia calça pra minha irmã, que tinha pedido. O resto foi só olhar mesmo. Mas foi bão! Depois, andei a esmo pelo centro, entrando e saindo de ruelas, batendo fotos e curtindo as várias portas de entrada da Plaza Mayor.
Plaza Mayor , vazia em dias de inverno
Depois do almoço, fui ver o Museu Reina Sofia, de arte mais contemporânea.
Fal, eu olhei com imenso carinho e interesse os Juan Gris e os George Braque, gostei desses caras. Depois, tinha umas pinturas de uma mulher, Maria Blanchard, que também me impressionaram bastante, especialmente "Mujer con abanico". E teve a Guernica, né? Como eu te disse, a gente nunca está suficientemente preparado para a Guernica. Eu entrei e saí da sala várias vezes, aproveitando que, surpreendentemente, não estava lotada de turistas. Eu olhava de soslaio, espiava as bordas da pintura, olhava as outras obras do Picasso (adorei as gravuras), dava uma volta, depois ia lá de novo. Quase saí correndo com o filhinho de uma turista alemã pra bem longe dali. A guerra civil realmente é um trauma pra eles. Várias fotos, recortes de jornais, manifestos, e não foi só ali naquele museu que eu vi isso, mas
praticamente em todos os lugares que eu visitei. Sempre havia uma maneira de fazer menção ao ocorrido, mostrar o que foi destruído, falar dos que lutaram, dos que morreram. A esse respeito, tinha uns desenhos, acho que umas águas-fortes (técnica que eu adoro) de Horacio Ferrer (que eu não conhecia), espetaculares.
Mas de tudo, o que mais me tocou, no sentido de capturar a alma, emocionar e paralisar foi mesmo a Menina na janela, do Salvador Dali. Um quadro que ele pintou em 1925, aos 20 anos, ainda não surrealista, supostamente retratando a irmã dele. A luz, os azuis, o diáfano da cortina, dos tecidos, a sensualidade despojada dos quadris da moça, os tons ocres do quarto fazendo moldura pra paisagem luminosa da janela, tudo ali me encantou. Engraçado como essas coisas acontecem e a gente não sabe explicar bem o por quê.
Finzinho de tarde, mas ainda claro. Saí do museu, que era do ladinho, colado ao hotel, e fui encontrar meu maridinho, pra modi a gente passear juntinho também. Fomos ao Parque do Retiro, coisa mais deliciosa.
DIAS 5, 6 e 7, quinta, sexta e sábado
Na quinta-feira, o D. combinou que a gente ia jantar na casa de um amigo dele, na verdade, um parceiro de trabalho, o cara pra quem ele trabalhava no começo, antes de ter a própria empresa, e que ainda hoje desenvolve umas coisas junto com o Décio e os sócios. Ele é finlandês, muito gente boa, e casou-se há poucos anos com uma espanhola, da Galícia, com quem tem um filhinho de 1 ano e 3 meses, a coisa mais fofa. Moraram um tempo em Barcelona e recém se instalaram em Madri.
Mas antes disso, o Prado. Tirei o dia todo pra me internar no Museu do Prado, cheguei lá quando estava abrindo, às 9, e só saí às 5 da tarde, pra ir pra casa do cara. Não há fotos, porque é proibido fotografar dentro do museu, mesmo sem flash. Eu levei um caderninho e escrevi páginas e páginas (a Fal pediu relato completo, eu fiz. Depois faço um adendo com essas observações).
Sobre a visita, observei umas coisas interessantes. Primeiro, o cara mora num lugar ótimo, bem perto da área central, metrô na porta, e numa avenida que é um calçadão, na verdade, sem trânsito de veículos. Gostei imensamente do tratamento urbanístico da praça, limpo, moderno, lúdico. Há umas placas no piso, de bronze, esculpidas em alto-relevo, geniais, salpicadas no meio das placas de cimento que conformam o piso da praça. E frisos fininhos em vidro, com luminárias embutidas, também no piso, que à noite são acesas, causando um efeito inusitado e interessante. Nas fotos dá pra vcs terem uma idéia melhor. Eu adorei.
A outra observação foi sobre a vida e a casa dos nossos anfitriões. Refleti sobre umas coisas ali. Eles são um casal jovem, ambos na faixa dos 35 anos, ambos trabalham, e eu sei que ganham bastante bem. No Brasil, com nossa estrutura patriarcal, provavelmente, na faixa de renda deles, morariam num apartamento amplo, teriam carro, empregada e babá. Lá, usam transporte público, moram num apartamento extremamente bem localizado, mas pequeno, e fora a creche, onde o menino fica alguns dias e horários da semana (tá pensando que é tempo integral? nananina) para que eles trabalhem, não há ninguém para fazer os afazeres domésticos, que eles mesmos têm que realizar.
Reflexão 1: em condições assim, não há espaço para desperdícios, 35 pares de sapato, acúmulo de quinquilharias, bibelôs, móveis e eletrodomésticos. É tudo compacto e low profile. De fato, eu senti, na Europa, não apenas desta vez, mas de outras também, um ritmo de consumo menos desenfreado que o nosso, o que eu acho tão bom e tão calmante. Acho que nós nos americanizamos demais, e conjugamos isso com a herança burguesa-colonial portuguesa no que ela teve de pior, shame on us.
Reflexão 2: em condições assim, a única maneira de se estruturar o dia-a-dia é com uma partilha maior de tarefas entre homem e mulher. E de fato, a impressão que eu tive é que os dois ali têm que se dividir, nos horários e formas que cada um pode, com os cuidados da casa e do filho, e assim é feito. O T. trabalha num esquema parecido com o do D., portanto às vezes passa muitos dias em casa, quando não está dando curso, como foi o caso desta semana. Então, ele tinha buscado o menino na creche, dado banho, e ele que fez a janta. A mulher chegou,nós saímos pra um passeio e um café, e voltamos para jantar. Fiquei muito à vontade no esquema aconchegantemente familiar com que nos receberam. Ah, sim, bebemos umas 4 garrafas de vinho no total. Um tinto enquanto comíamos uns aperitivos, outro branco, durante a sopa e os camarões, mais um tinto acompanhando a carne e purê de castanhas, e depois uma seleção de vinhos (um espumante espanhol, um porto e um branco quase docinho) para a sobremesa, com doce de marmelo e queijos. Tava uma delícia.
Monumento nos Jardins Del Retiro
Na sexta-feira, dia 6 da viagem, eu fui a Segóvia, que fica pro noroeste de Madri. Cidadezinha bem antiga, com restos da ocupação romana (um aqueduto do século I d.C. ainda de pé, bem na entrada da cidade) e as muralhas medievais bem marcados na paisagem e na identidade urbana. Amei de paixão, nem a chuvinha fina atrapalhou. Igrejas e praças dos séculos XII, XIII, XIV, pra todo lado. Vestígios palpáveis da presença dos mouros nas fachadas, nos azulejos, nos arcos e cores da cidade. O mais impressionante foi a visita ao Alcázar, que é um palácio cuja existência remonta ao século XII, e que neste meio tempo foi sucessivamente sede de governo, fortaleza militar, prisão e palácio residencial de diversas famílias reinantes. O termo Alcázar é de origem árabe e designa exatamente isso: sede de governo. Pra vocês terem idéia da importância do negócio, durante toda a idade média, ele foi uma fortaleza chave para o domínio dos reis de Castela, e foi de lá que a Isabel católica (aquela mesma que casou com o Fernando de Aragão e financiaram a viagem do Colombo) saiu em 13 de dezembro de 1474 para ser proclamada Rainha de Castela na Plaza Mayor de Segovia! Tem uma pintura mural muito bacana dentro deste palácio celebrando esse momento. O alcázar fica no alto de uma colina, numa das pontas do recinto amuralhado da cidade antiga, e de lá se descortina uma vista impressionante. Hoje ele é um museu lindíssimo, que apresenta as várias reformas e acréscimos que foram sendo agregados pelos sucessivos reis da Espanha. Observem nas fotos a riqueza estonteante de detalhes dos tetos, com
trabalhos de entalhe em madeira e folhação a ouro de fazerem cair o queixo.
No dia seguinte, sábado, finalmente, eu pude fazer um passeio de dia inteiro com o D.. A pedido dele mesmo, fomos a Toledo. As fotos falam por si. Cidade medieval também, foi capital do reino de Castela durante séculos, antes disso foi sede de um importante califado. Até o século XV ou XVI era uma cidade muito mais rica, estratégica e importante do que Madri, no panorama político espanhol. O testemunho da convivência entre mouros, judeus e cristãos, sob o califado, é fascinante. O domínio cristão não foi tão condescendente, e me irrita sempre ver as sinagogas e mesquitas das cidades que os católicos dominaram todas transformadas/mutiladas/descaracterizadas/profanadas em igrejas. Com muita sorte, hoje elas não são mais igrejas e funcionam como museus. Em Toledo, por exemplo, a Sinagoga del Trânsito hoje é o Museu Sefardi, que guarda a memória dos judeus espanhóis, seus costumes, suas tradições. Acontece o mesmo com os templos pagãos romanos e gregos em todo lugar. Ódio, viu?
A casa do El Greco tava em obras de restauro e eu não pude entrar. Comi os tais mazapanes, que são doces divinos que se desmancham na boca, feitos de farinha e amêndoas e ovos. Nham nham.
Ambas as viagens - Segóvia e Toledo - foram feitas a bordo de um trem de alta velocidade, que levou cerca de meia hora pra vencer a distância à capital e eu fiquei impressionada com a eficiência da rede de transportes. Igualzinho aqui, ai, ai...
É isso. Domingo de manhã cedinho estávamos a caminho do aeroporto para a viagem de volta (no caso, eu de volta pro Rio e ele pra Bogotá). Foi bom demais da conta e deu um gás que eu tava precisando pra começar o ano de verdade. Desculpem ter me alongado tanto, mas adorei ter deixado registradas essas lembranças, a que vou poder sempre recorrer quando tiver saudades.
Puerta de Alcalá