Por Dade Amorim
Orhan
Pamuk. Neve. Trad. Luciano Machado.
São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Um
livro que fala de gente, poesia e do povo que passa por uma crise de identidade,
traduzida em um golpe de Estado contra o fanatismo religioso. Neve, de um conteúdo político acentuado,
fala igualmente de arte e valores estéticos. Uma leitura agradável, fluida, que
retrata um povo e seu surpreendente modo de pensar. É revelador, no sentido de
que nos põe em contato direto com essa mentalidade tão diversa da ocidental.
Finda a leitura, percebemos o quanto pudemos aprender sobre os orientais e
entender as crises que os jornais noticiam quase todos os dias. Ao mesmo tempo,
não escapa a esse autor surpreendente a delicadeza dos sentimentos, os choques
entre pessoas que conservam a crença em Alá e no Corão e os que já não creem; o
medo da violência de que o Estado lança mão para impor o laicismo, responsável
pela morte de inúmeros estudantes de uma escola religiosa e de cidadãos que
conservam sua fé e precisam muitas vezes permanecer ocultos para escapar à
morte.
Talvez
Neve seja o modo pelo qual o autor tenta
levar os turcos a refletir sobre sua identidade. Os conflitos entre os de sua
própria cultura, a busca de uma compreensão mais elaborada sobre a vida na
Europa e no mundo ocidental, mostram a necessidade de uma abertura maior entre
uns e outros. É necessário, antes de tudo, amenizar a tendência ao fanatismo, e
sem dúvida Pamuk visou esse objetivo, escrevendo Neve. Porém há mais do que isso no livro admirável que ele nos
entregou. Nas 483 páginas de sua obra, exalta a poesia de diversas
maneiras, em especial quando fala do protagonista, o poeta Ka, há alguns anos
morador da cidade de Frankfurt, na Alemanha, que volta à Turquia, à cidade de
Kars, uma das mais pobres do país, que naquele momento sofre os efeitos da
violência policial e de tempestades de neve contínuas.
A
neve que dá nome ao livro, ao mesmo tempo flagelo e inspiração para Ka, aparece
destacada em seus flocos hexagonais, “interminável repetição de um milagre
banal”. Ka vê uma semelhança entre cada pessoa e esses flocos, pela
singularidade de cada um deles e seu mistério. Ka é um jornalista exilado e, como poeta, um
estranho dentro de uma sociedade que se confunde pelas verdades que estão
mudando, pela perda da suposta perfeição de um antigo e entranhado ideal que
vai perdendo força à medida que o tempo passa e mais pessoas o veem em outra
dimensão. As reflexões e as diferenças constroem esse livro, ao lado da existência
humana, dos seres que constituem o eu e o outro. São três dias que Ka permanece
em Kars, tempo suficiente para que ele veja na neve constante a inspiração – “o
silêncio da neve” – e um cenário que, de alguma forma, o ajudará a suportar a
visão do diretor da escola sendo assassinado diante de seus olhos e o golpe
militar acabando com jovens. Mais tarde ele vai saber que seu amigo adolescente
Necip fora também morto naquele dia.
Entre
a ficção e a realidade, a narrativa nos prende até o final, quando o próprio
autor assume sua participação na história, deixando ao leitor a dúvida sobre se
fora ele mesmo a representar o papel do poeta em Kars, cidade que espelha a
Turquia e sua complexidade histórica e ideológica, pela mistura de gente tão
diversa quanto curdos, islamitas, fundamentalistas, separatistas, azerbaijanos,
secularistas e socialistas, militares, ateus e todos que formam a difícil
mistura cultural, por conta da qual acontecem na cidade o assassinato do
prefeito, do diretor da escola religiosa e os suicídios de moças proibidas de
usar o manto que, de acordo com a religião dominante,deve
cobrir a cabeça de cada mulher.
A
(talvez) obra-prima de Pamuk mostra que entre o Oriente e o Ocidente o conflito
é inevitável. Mas também existe, a par desse conflito, um desejo de aceitação
da mentalidade ocidental, por conta do que ela tem de mais moderna, nada presa
a tradições que impeçam o progresso. Orhan deixa bem patentes ressentimento,
ódio e fanatismo, quando Azul,
terrorista islâmico que ainda mantém seus valores religiosos, declara que se
recusa a ser como um europeu: “não vou imitá-los feito um macaco”. O conflito
vai do extremismo a uma situação de perda da identidade e chega a ser
humilhante ter que abandonar as tradições e ver a sociedade tão dividida e, em
muitos casos, perdendo suas características próprias.
Nunca
me arrependi de ler um livro de Orhan Pamuk, mas nesse caso encontrei tanta
beleza a par da triste situação daquele povo; aprendi tantas coisas, percebi
uma riqueza fora do comum no protagonista Ka e, acima de tudo, tive uma
experiência rara ante a sensibilidade e a competência com que o autor chega às
vezes a surpreender. E gostaria que ele fosse brasileiro e pudesse explicar
nosso país como conseguiu explicar a Turquia em Neve.