CANÇÃO DA NOITE
Por Ricardo Augusto dos Anjos
Noite amiga. Noite tão antiga. Noite ambígua. Bígama.
A noite é uma criança? Não. A noite é adulta. Adúltera.
Sem primeiras pedras. Ilesa e anistiada. Noite amada. Entusiasmada.
Noite dos amantes. Noite de paixões imensas.
De loucuras e procuras intensas – de um pelo outro
de outro pelo um
de um pelo um
de outro pelo outro
Ora, estamos todos aqui, neste momento, neste exato momento,
envolvidos pela névoa, pela sedução na noite.
Todos nós, cúmplices da noite que trescala, que exala paixão,
que exalta paixão, amor, forte emoção,
através da palavra, através da canção.
-- plateia e palco ao mesmo tempo:
observadores e observados, absorvidos pela noite sensível e iluminada
por um grande brilho próprio, interior, muito sóbrio e escondido – uma sombra que brilha.
Isso aí; a noite é uma sombra que brilha e nos abriga.
A noite e o bar. A noite é o bar.
Sem noite não haveria bar, não haveria bares tão intimistas.
E também mudaria o conceito de noite.
Se estamos aqui – nunca por acaso – é porque somos atraídos ou retraídos
pelo útero da noite.
Sim,os bares são úteros da noite, onde nos sentimos em segurança,
uma espécie de segura clandestinidade, indevassáveis. De volta ao útero materno,
alimentando-nos não mais de placenta nem água, mas de néctares, de álcool,
que nos enlevam e nos levam ao país dos sonhos.
Porre? Não! Mas um estado de encantamento que só mesmo a noite proporciona
e a todos emociona, emulsiona... Até voltarmos à tona, à toa, à lona da normalidade banhada de sol,
sol que seca as lágrimas do sereno. Sereno que refresca sempre as madrugadas
e o começo das manhãs que se preparam para resgatar a moral do dia.
Niterói - 1995
Ouça Erik Satie em Les Fils des Etoiles, para acompanhar a leitura