Por Vera Guimarães
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Numa de minhas mais remotas lembranças estou, aos quatro anos, em cima da mesa de ardósia fazendo passos de balé, em ponta, os dedinhos virados para dentro do pé. Onde eu teria visto balé? Na década 1940 ainda não havia televisão nas casas, eu provavelmente ainda não teria ido ao cinema. Devo ter visto algum espetáculo numa escola, ou alguma irmã ou prima tenha trazido a delicadeza de braços e rodopios para minha até ali curta existência.
Ouvíamos muito rádio, cantava-se bastante. Mas acho que nunca vi minha mãe dançando. Meu pai, ao embalar alguma criança, sempre o fazia gingando com gosto. Nas festas na roça, ele se juntava ao batuque e levantava poeira nos pátios e alpendres.
Em casa, mesmo sem vitrola, em algum aniversário se improvisava uma dança. Os jovens passavam a tarde instalando algum aparelho emprestado, selecionando os discos, aqueles pretos, pesados, que só tinham duas músicas, o lado A e o lado B. Ou tinha-se a sorte de haver algum programa de rádio com uma seleção musical dançante.
Numa dessas reuniões, aos sete anos mais ou menos,tirei para dançar um dos convidados, um moço encantador, amigo das irmãs mais velhas. E lá ia eu, segurando na aba do paletó dele. Ai, que vergonha!
Quando comecei a ir ao cinema, tive a sorte de estar no auge a era dos musicais da Metro. Depois de cada Fred Astaire, cada Ginger Rogers ou Leslie Caron, as amigas e eu passávamos algum tempo tentando repetir os passos cheios de graça e leveza que víamos na tela. E ia eu cedinho para a escola fazendo, entre o passeio e a rua, alguns dos passos de Gene Kelly em Cantando na Chuva.
Aos 13 ou 14 anos, comecei a frequentar festinhas de aniversário em que havia dança, e depois as horas-dançantes, reuniões em que o propósito era mesmo dançar. E dançávamos ao som de Waldir Calmon, Trio Iraquitan, Jean Paques et sa Musique Douce...
O protocolo era meninas pra cá, meninos pra lá. E o rapaz devia vir convidar a menina para a dança. Acho que um dos maiores motivos de eu nunca ter querido ser homem está nessa possibilidade horrenda de levar um não nessa hora. Olha, é preciso muita coragem para um rapazinho atravessar o salão, debaixo do olhar dos amigos, e abordar uma garota.E havia meninas que recusavam o convite. Exatamente assim:
Combinávamos entre nós, as amigas, estratégias para nos livrarmos de parceiros indesejáveis, aqueles que fossem mais feios que o aceitável, que dançassem mal, que tivessem mau hálito, aqueles inconvenientes que apertassem a parceira além da decência, ou além da querência dela.
Havia um calendário de bailes: aniversário do clube, Baile da Primavera, os bailes de formatura. Além desses, provocava expectativa na moçada o anúncio da vinda de alguma orquestra grande, tipo Cassino de Sevilha, em atividade até hoje.
1954 - Apresentação da Orquestra de Espetáculo Casino de Sevilla, em Laguna - Clube Blondin
Orquestra Casino de Sevilha - http://www.lagunista.com/4069/176864.html
Os bailes aconteciam no salão nobre do principal grupo escolar da cidade, na sede social de clubes de futebol e, no caso dessas grandes orquestras, até no salão de concessionárias de veículos ou no galpão de oficinas mecânicas. O salão da Ford tinha um lindo piso de cerâmica vermelha, bem dançável, mas o da Auto-Mecânica, cimentão grosso, deixava a desejar. Mesmo assim, tudo era festa.
Eu me lembro com especial enlevo do salão de baile na sede social do Democrata Futebol Clube. Era uma casa de esquina, com varandas em arco, pilastras bojudas, toda a construção em branco e vermelho, as cores do clube.
Entrávamos por um portãozinho num murinho baixo (Sem grades? Configuração impensável hoje.), subíamos uns quatro degraus, que pareciam majestosa escadaria, e estávamos na varanda, que fazia um L e se prolongava pela fachada da direita. Entrávamos no hall, nas laterais os toaletes, à esquerda a escada que conduzia ao balcão onde ficava a orquestra e de repente estávamos no salão. Ao fundo, o bar, nas laterais, as mesas. No centro de tudo, o salão, cenário de tanto divertimento, tantas aflições, tantos flirts, tantos rompimentos, tanto encantamento, tantas decepções.
Sim, nos bailes, nas danças, nas recusas de danças, na permanência com o mesmo par, ou na rapidez na dispensa dele (“Com licença, F. está me chamando!”) desenrolavam-se os dramas dos amores jovens. Danças davam recados. Criavam laços. Desfaziam nós. Consolidavam afetos.
O cinema soube traduzir com danças alguns desses momentos memoráveis, momentos nos quais as palavras são inúteis, ou dispensáveis, ou supérfluas. Estas são algumas das minhas cenas preferidas:
- em HOPE FLOATS, , o personagem de Harry Connick Jr consegue com insistência e uma dança fazer com que a personagem de Sandra Bullock toque a vida depois de uma decepção fenomenal.
- em SUMMER OF ’42 , auge da II Guerra, a protagonista enfrenta a perda indizível numa dança com o adolescente que a venera.
- em PICNIC , os personagens de William Holden e Kim Novak definem os rumos da trama (e de suas vidas) ao som de Moonglow
E você, querido leitor, quais são suas melhores cenas de dança?
Depois que parti para a vida universitária, de trabalho, depois casamento, pouco dancei.
Hoje, precisada de um exercício aeróbico, não conseguia uma atividade que me agradasse. Caminhar, correr, nadar, andar de bicicleta, não. Nada me agradava. Até que descobri o dancercise (dança + exercise), onde, três vezes por semana, na companhia de outras jovens como eu, me acabo, feliz, dançando como se não houvesse amanhã e como se não tivesse ninguém olhando.