segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A guerra em tom menor



  Mary Ann Shaffer e Annie Barrows. A sociedade literária e a torta de casca de batata. Trad. de Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.

Textos sobre o período da segunda guerra, versando sobre o nazismo e seus horrores, quase sempre são muito tristes, às vezes chocantemente dolorosos. Deixam na boca da gente um gosto amargo, e na cabeça uma ideia malsã sobre o mal de que o homem pode ser capaz.
Eis que, ao iniciar a leitura de A sociedade literária e a torta de casca de batata, eu não tinha a menor ideia do que se tratava. Gostei logo de início do humor que permeia o texto e do gênero epistolar de grande leveza. Isso durou enquanto as cartas tratavam de amizade e livros. Sendo a protagonista uma escritora inglesa que inicia sua carreira com algum sucesso, fala-se bastante de seus trabalhos, há trocas entre ela e seu editor e a irmã dele, seus amigos de infância.
Sem choques ou muita surpresa para o leitor, no entanto, as cartas, datadas de 1946, enveredam pelos caminhos da guerra, que já terminara, mas tinha deixado sua marca no território inglês, tanto em Londres como em Guernsey, uma das ilhas do Canal da Mancha, que os alemães invasores não aliviam de seu regime pesado e brutal.
Apesar disso, no entanto, a narrativa prossegue no tom leve e bem humorado do início. Obviamente, se a guerra estivesse ainda em curso, teríamos outro daqueles textos brutais. Mas os episódios a que o livro se refere, alguns bem tristes, são narrados num tom cheio de vivacidade e se referem mais aos valores humanos dos habitantes, dos recursos de que lançam mão para fugir ao terror e das coisas que, vistas a posteriori, ficaram até divertidas, muitas vezes.
As pessoas e suas cartas falam muito mais de amizade e carinho do que de angústia, mesmo quando esta fica subentendida. E até mesmo um oficial a serviço da ideologia nazista se revela um homem bom e delicado, que conquista o coração da personagem mais simpática da história. Há passagens dolorosas, sem dúvida, quando se recordam acontecimentos repressivos e o medo que aterrorizou os ingleses.
Toda a Europa e os demais recantos do mundo, cada qual a seu modo, sofreram perdas e viveram as ameaças de uma mudança para muito pior em suas vidas. Mas o que salva esse livro das trevas é o fato de se restringir a territórios especificamente ingleses, e acima de tudo ter a guerra como passado, com a superação de grande parte de suas marcas, agora apenas uma lembrança dolorosa e indesejável, da qual as pessoas querem se livrar. Já existem condições para recuperar ao menos parte da alegria de viver e do otimismo que caracteriza quase todos os personagens, na maioria gente bem comum, do povo, mas que soube criar algumas condições – e algumas mentiras benfazejas – que os ajudaram a passar pelos anos de treva. Talvez se possa dizer que o texto é todo ele permeado pelo reflexo da vitória dos aliados e da derrota esmagadora que, de certa forma, enterrou aquela fase trágica do mundo. Mesmo a lembrança recente de temores e sustos não teria mais força para esmagar aquela gente corajosa, cheia de vitalidade e pragmatismo.
A sociedade literária e a torta de casca de batata é uma leitura, apesar de tudo, muito agradável, de astral sempre elevado e até, em algumas passagens, bem divertida, que consegue levar o leitor a se afeiçoar a seus personagens. Vale a pena.