Telinha querida,
Enquanto aguardamos Carla San, Alline Storni e tempo para recomeçarmos a retomar a escrever para o Primeira Fonte, preciso te dizer que hoje recebi um telefonema atencioso do Jorge Carrano preocupado com o meu sumiço e o da Ana. Expliquei o que acontecera, que precisamos nos ausentar por um tempo por questões de instabilidade de saúde do pai dela, e que o Primeira Fonte estava entregue a você . Ele, imediatamente emendou; e muito bem entregue. Concordei com ele, pois sua Direção de Redação tem sido maravilhosa. Como é importante ter amigos, minha amiga. Ele conversou com o Ricardo Augusto dos Anjos, que passou meu celular para ele e, com gentileza demonstrou sua preocupação. E olhe que não tendo visto nenhum comentário dele, no PF, ultimamente, estava preocupada também com ele, mas ainda sem tempo para uma atitude.
Sabe como é, a casa precisa ser retomada, as aulas de música começaram, e os ensaios do coral que se apresentará dia 23, aqui em Caxambu, foram intensificados. Então , sinto-me um pouco atropelada pela vida. Mas foi muito agradável ter ouvido a voz antiga do Carrano, a mesma de quando jovens e apresentávamos um programa de rádio com mais alguns amigos, chamado " O Estudante em Foco". De repente me pareceu que o tempo não havia passado, que dentro de seis meses completarei 70 anos, e ele deve andar nesta mesma idade cronólógica. Ouvi a voz de um jovem, acredite. O que o espírito feliz e jovem podem fazer por nós, não é mesmo, querida?
Esta correspondência urbana de hoje pretende fuxicar mais um pouco na vida de sua família, relembrar os velhos casos, as boas histórias que mantém aquecida a nossa alma, que segundo o Niemeyer Filho, o neurologista, mora em nossas mentes. Foi um prazer ter te conhecido pessoalmente e abraçado em junho, quando estive no Rio para a operação de minha irmã que, dia 11 deste mês segue para Portugal, onde ficará até outubro. Na ocasião irá a uma feira medieval que tradicionalmente acontece em alguma cidade por lá.
Mas, vamos ao nosso assunto: conte-me, por favor, contadora de histórias, alguns casos de sua família.
Beijo afetuoso, minha amiga
Esther
PS- Izaak Dinensen dizia que as melhores leituras são propiciadas por contadoras de história. Ela tinha prazer em contá-las.
Telinha , ladeada por Ana Laura e outra amiga, Airee
Eu estou no meio,atrás. Telinha e Airee ao lado
LENDAS DE FAMÍLIA
Telinha Cavalcanti
Esther, que gentil o gesto do Carrano! Abri um imenso sorriso ao ler seu e-mail, bem no espírito do ditado "quem meus filhos beija, minha boca adoça" :)
Pois vamos falar dos outros antes que eles falem da gente, né? Há muitas, muitas histórias, que voltam quando a gente conversa. O nosso cérebro é uma coisinha prodigiosa, e é só puxar um fio que todo o novelo vem junto...
Lá em casa, quando não se tem muita certeza de quando uma história aconteceu, ou se alguns detalhes se perderam com o tempo, ninguém deixa de contar, não. Só precisa dizer que é lenda da família :)
Uma dessas lendas conta que minha tia foi ao cemitério, e, no caminho entre as sepulturas, tropeçou no que lhe pareceu um galho seco. Não deu outra: naquela mesma noite, acordou de madrugada com uma pancada violenta nas costelas; segundo meu vô Juca, a tia chutou um osso que estava desenterrado e o falecido foi se vingar.
Nessas histórias sobrenaturais, papai contava a madrugada horrível que passou numa pensão, quando ouviu arrastar de correntes até o dia nascer, seguidos de uns gritos desafinados. No café da manhã, reclamou com o dono da pensão que tinham lhe dado um quarto malassombrado. O senhor estranhou a conversa e pediu que papai mostrasse de onde vinha o som; papai subiu ao quarto, o último do corredor, e apontou uma parede. O dono da pensão caiu na risada e mostrou o que havia do outro lado: o poleiro do papagaio, que tinha a pata presa numa corrente e que passara a noite gritando porque a comida acabou...
Papai, depois dessa, não teve mais muita crença nas almas do outro mundo. Eu já era menina grande, meus dez, doze anos, quando mamãe contratou uma empregada muito medrosa, a Amparo. Certa vez, papai se escondeu do lado de fora de casa e começou a chamar a pobre, com uma voz lúgubre: "Ampaaaaaaaro!!! Ampaaaaaro!!! Amparo, eu vim lhe buscar, Ampaaaro!"
A coitada cobria a cabeça com o pano de prato e ia correndo chamar minha mãe: "Olhe, dona Helena, o que o doutor tá fazendo!", reclamava, quase chorando. Mamãe respondia "Minha filha, se você sabe que é ele, porque tem medo?"
Mamãe sempre foi muito pragmática, nesses assuntos de almas do outro mundo: diz sempre "Quem tem Jesus no coração não tem medo da escuridão" e "Os mortos não fazem mal a ninguém, a gente tem que temer os vivos." Outra lenda da família conta que ela dormiu no quarto em que minha avó Stela morreu - na cama em que ela morreu!!! - poucos dias depois do enterro da velhinha. E sempre me falou, com olhos tranqüilos: "Sua avó jamais voltaria para fazer mal a ninguém, porque eu devia ter medo dela?"
O medo é uma coisa recorrente em Pernambuco. Seja o medo do sobrenatural, da Perna Cabeluda que aparecia do nada, sem corpo, chutando as pesoas, ou o medo da crueldade dos antigos; para construirem a Rua Nova, no cento de Recife, muitas casas foram demolidas e, numa delas, acharam um esqueleto dentro de uma parede. Começava aí a lenda da Emparedada da Rua Nova, moça que foi presa viva dentro das paredes da casa por ordens do pai. Cogita-se uma gravidez sem casamento, mas nunca se pôde provar. Mas dizem que ela anda pelas ruas, de madrugada, chorando seu destino...
MAIS LENDAS
Pois bem. Papai era menino quando a Segunda Guerra começou. Meus tios mais velhos já na casa dos 18, 20 anos. E aconteceu de um deles ser convocado prá guerra. Que arma? Não sei, só me disseram que ele ia embarcar no porto do Recife. A minha vó não desesperou porque não era mulher de desesperar, mas não gostou da história, é claro.
No dia marcado, cercado pelas rezas e recomendações maternas, lá foi meu tio defender o Brasil. Mas meu tio não lutou. No dia do embarque, veio a notícia: a guerra acabou!!!
Minha vó não era de desespero, como eu disse lá em cima. Mas, certamente, tinha muito prestígio no céu. :D
Outra do tempo da guerra foi que, perto da casa do meu pai havia uma loja de doces de um casal alemão. E, com medo de represálias, o casal foi embora, dizem que só com a roupa do corpo. Não era fácil ser estrangeiro no Brasil naqueles tempos. A notícia não tardou a espalhar pela criançada. O mais corajoso quebrou uma janela, entrou e ficou jogando doces, chocolates, tudo de bom que via pela frente, para o resto da turma pegar. Papai tava nesse meio, felicíssimo... até que vovó viu a turba. E viu o filho mais novo no meio. Papai já passava dos 50 anos quando me contou essa história - e até aquele dia não esqueceu a surra que levou.
Saindo da guerra direto para o comecinho dos anos 80, uma história que aconteceu com uma das minhas irmãs. Elas são mais velhas do que eu, e, quando eu tinha meus 10 anos, as duas já estavam para casar. Então, essas histórias, mais que lendas da família que me contaram, são lendas da família que eu vivi :)
Minha irmã estava noiva e quis fazer uma sobremesa caprichada, para impressionar o noivo. Uma bavaroise de limão. Mandou todo mundo sair da cozinha - eu, principalmente, para não atrapalhar - e só saiu com a cristaleira mais bonita da casa cheia de um creme branco-esverdeado.
Depois do jantar, solenemenete, minha irmã serviu o doce. E, para surpresa de todos, ela havia errado a receita e a bavaroise estava intragável: limão demais.
Só o noivo comeu, repetiu e ainda afirmou "Tá uma delícia, meu amor!
Eu, com toda a seriedade dos meus dez anos, olhei para papai e vaticinei: "Esse aí casa com ela".
Mais tarde, toda a família notou que a minha irmã começou a fazer um caderno de receitas, como o que a minha mãe tinha. Tudo muito chique, musses, suflês, sobremesas caprichadas. Ela não colava as receitas das revistas, pois achava feio - preferia passar a limpo, com sua letra de professora. Então a minha irmã casou, levou seu enxoval vaporoso (havia um robe com pluminhas na barra, ela parecia uma estrela de cinema...) e seu caderno preto de receitas. Uma semana, quinze dias depois, ela ligou com voz muito humilde e pediu para falar com mamãe... "Mamãe... como faz arroz, mesmo?"
Estas são algumas histórias lá de casa. Qualquer dia desses eu conto mais algumas... :)