segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A transformação do romance depois de Proust

Por Dade Amorim


As reminiscências são a matéria-prima dos fios desse tecido denso do romance de Proust. Vida e arte se entrelaçam na origem da Busca, e daí surge uma terceira realidade: o romance, a partir do qual tudo recomeçará sob uma forma transfigurada. As reminiscências eclodem da trama sob a forma de signos – signos da mundanidade, da descritividade, do amor, da arte – através dos quais podemos desfiar a tapeçaria sem desmanchá-la, tentar a identificação de seus elementos, seus movimentos interiores, suas combinações próprias, as configurações predominantes nesse mundo de múltiplas dimensões, as sensações chave, capazes de despertar lembranças e sentidos. Por meio desses signos, vemos o lado surrealista da existência, que o autor mostra através de suas imagens.
O tom leve das crônicas mundanas da Busca... envolve muito mais do que a superficialidade aparente do tema: os signos proustianos da mundanidade, descritividade, que aparentemente não tratam de verdades lógicas ou reflexivas, têm um sentido que muitas vezes fica encoberto pelos hábitos sociais. Proust descreveu esses hábitos, principalmente os da nobreza, nas últimas décadas do século XIX e início do século XX, quando já não havia esperanças de que o poder retornasse a suas mãos. Ele foi o romancista de uma aristocracia em pleno aniquilamento.
Proust não era um memorialista, narrador de fatos em termos simplesmente documentais, mas fazendo viver os personagens em seus textos, criando para eles novas situações esclarecedoras de suas personalidades em movimento.
O grande paradoxo do romance é o de toda obra de arte: ela é irredutível à realidade que traduz. A obra pode representar seu tempo como uma harmonia entre a narração dos fatos, a atuação de seus personagens e a análise sutil da psicologia desses personagens. O tratamento descritivo de interiores, objetos, paisagens, ambientes, por outro lado, e o tom jornalístico, a crônica social e de costumes, todos juntos, dão conta da natureza polissêmica do texto que, documentando e descrevendo, comentando e analisando, embora acima de tudo reinventando o mundo, abrange campos de interesse da história, da sociologia e da crônica, entretecidos de biografia e ficção, além da percepção do papel da arte e da cultura na sociedade. Essa percepção dá conta de um lugar de eleição para a arte no mundo proustiano.